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Instruções para performance em hipermercado

por Natalie Lima


Quando começa, é sempre no mesmo lugar: setor de carnes, funcionários vestidos de branco para contrastar com as manchas de sangue. É ali que a ação se inicia, os moedores trabalhando sem parar, você segura uma pequena peça de chã, ou de patinho, o que estiver mais barato e menos gorduroso, você segura o pedaço de boi morto embalado com plástico e isopor enquanto aguarda a vez de ver a peça vermelha que acabou de escolher desfazer-se em uma massa compacta de partes minúsculas.
Ao lado direito há carvão ensacado, muitos falsos tipos de sal e espetos para churrasco, ou boi empalado, é assim que você chama esse prato. Sabe, não é o cheiro de carne crua que faz tudo começar. Ele não te incomoda, você até gosta. O problema é ver todo aquele volume de costelas, filés, músculos e corações enormes que não param de chegar em bandejas descartáveis: o branco e o vermelho. Você se pergunta sobre o que fizeram com as patas e as cabeças, você quer saber se bois e vacas diferem em tipos sanguíneos.
Em seguida você imagina como é recompor um boi com os pedaços embalados: olha para o desenho de fundo azul, pregado no alto da parede azulejada, e correlaciona cada parte do bicho a um número. Alcatra 5, Peito 8, Acém 2. É assim que, voilà, diante de nós, no açougue do hipermercado, há um verdadeiro manual para recompor um animal retalhado a partir de muitos outros, e consequentemente uma montanha de carne sem pele, quase sem ossos, jamais com os chifres,

chifres, pronta a ser reerguida – edifício mole nascido de um curral.

Para mantê-lo de pé e estruturado será preciso que alguém, você, se proponha a ficar de quatro ali mesmo, dignamente, a pele besuntada com alguma substância viscosa para que os pedaços não deslizem do corpo para o chão.

É assim que se começa, portanto.

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Na mesma fila para moer carne você sente náuseas bem fortes, assim como um desejo de fugir, de lançar gritos estridentes na cara das pessoas, com seus carrinhos em punho, a maioria abarrotada de produtos, tantos deles conquistados graças a pequenas violências e ouvidos atentos às promoções que o locutor do hipermercado anuncia com a altivez de um idiota.

Quanto à substância viscosa, você pode encontrá-la no setor de ingredientes para sobremesas – oitavo corredor à direita. Lance mão de três caixas de leite condensado, coloque-as suavemente no carrinho, como quem delas fará um pavê no domingo, e aí sim, dirija-se às carnes. Será uma operação complexa, mas exequível, a de abrir as caixas com precisão, e em seguida lambuzar-se com o leite condensado.

Será uma operação complexa, mas exequível.

As carnes já estarão desembaladas, seus pedaços à mão, e para que isso aconteça é fundamental ter um ou mais cúmplices. Talvez sem a ajuda alheia (o que aqui significa dizer: sem um projeto comum) não se chegará ao fim dessa empreitada necessariamente quadrúpede.

É preciso, então, formar no mínimo uma dupla. Escolha com precisão. Recomendo uma pessoa que não seja muito íntima, e que saiba lançar projéteis, porque depois de uma ação como essa pode ser que ocorra qualquer coisa de surpreendente. Não me refiro à obviedade que será o leite condensado escorrendo pelo seu corpo enquanto os pedaços forem acoplados pela outra pessoa, bípede. Não. Durante esse incidente previsível, tudo o que você poderá fazer para aliviar a angústia será gritar Márcia X, Márcia X, Márcia X.