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entrevista


José Juva é mamífero, poeta e ensaísta. Visitante do paleolítico e ativista do movimento pelo teletransporte público. Jornalista, mestre e doutor em Teoria da Literatura. Publicou os livros: Deixe a visão chegar: a poética xamânica de Roberto Piva (ensaio, 2012), Vupa (poesia, 2013), Breve breu: escritos sobre literatura e cinema (ensaio, 2014) e Watsu (poesia, 2016). É também membro fundador do Coletivo Casa de Marimbondo e da banda Natural prensado. E discípulo da equipe jamaicana de técnicos arcaicos do êxtase. Nesta edição da revista, ele é entrevistado por Leandro Durazzo e fala sobre o que acredita ser o papel da poesia no mundo, espiritualidade, êxtase e mais um tanto de coisa difícil de descrever. A verdade é que a viagem foi intensa. Boa leitura.

[Leandro Durazzo]: Salve, macaco velho. Objetivo, direto e reto pra ver o que a gente desenrola: ultimamente fala-se muito de política, fala-se muito de política como sendo muito tudo, e a poesia que não é revolução (no rés do chão, digamos, no chão da fábrica) vai sendo lida como menor, desnecessária, desconectada das massas e urgências da vida. O que eu quero dizer é: como fazer poesia – como ouvir poesia, como encontrar poesia – no meio da gritaria surda e desse desespero cada vez mais agitado? Nem pergunto o porquê, mas o como. E, se tiver espaço aí na ponta da pena, também outros detalhes: poesia quando, onde, olhando com que olho o gato, com que olho o frango assado? No meio da vida do menino, entre uma conta e outra, durante as aulas? Como o poema chega?

[José Juva]: Aho, maninho macaco! Tem um texto do Octavio Paz em que ele menciona e busca pensar as sutilezas entre a revolta, a rebeldia e a revolução. Cabe muito aí. Eu fiz um poema certa vez sobre o Daniil Kharms, pensando como os poemas poderiam quebrar vidraças para além das metáforas. É fundamental pensar como as escrituras todas podem entrar nesse oxigênio, nesse caos, nesses coices do cotidiano. Eu sempre repito, mesmo sozinho, num mantra, que poesia é diálogo. E é evidente que escapa aos limites do poema, do livro e tudo mais. Andando mais um pouco por aí, acredito que essa leitura da poesia como algo supérfluo, desnecessário, desconectado é tanto causa quanto sintoma de uma série de doenças reais e imaginárias e problemas no umbigo do contemporâneo. Algo neste sentido é o que pensa o Nuccio Ordine quando vai defender a utilidade do inútil. E podemos trazer um vinho do copo do amigo cavalodada quando ele vai discutir as relações entre inutilidade e irrelevância e a poesia sacudindo estes limites em nascimentos contínuos.

Num sentido rápido e rasteiro, poderíamos descartar os poemas no páreo com água, comida, sono, sexo. Num movimento lento dos olhos e dos pulmões podemos compreender que é justamente numa outra margem e brechas e interlocuções que os poemas vão se fazer sentir. A poesia não está exatamente, estritamente no páreo, é o cavalo que se resolve e inventa no teletransporte ao invés da corrida. Neste sentido, busco fazer, ouvir, encontrar poesia no exercício precário, difícil e urgente da escuta. Como alguém que se abaixa durante um tiroteio e justamente aí percebe a vida no chão. O grande lance é o diálogo e a escuta. Algo que me lembra, por exemplo, as proposições do Martin Buber. Algo que me lembra: não há lugar melhor para encontrar a ataraxia do que nas passagens, na observação atenta ao ponto da diluição e do êxtase. Em sentido prático, tenho escrito poucos poemas no meio desta jornada pedagógica (li depoimento parecido do Alberto Pucheu sobre as aulas e os poemas). Mas imagino, ou ao menos tento, fazer escapulir as pequenas cápsulas do tempo dos poemas que viriam numa dispersão pela fala diária e na busca do afeto dentro deste tempo caótico. Como o poema chega, como o poema começa, como o poema dança. São questões que por ora se encontram na "época das sábias lavagens", como disse uma poeta que aprecio e muito estimo. Para nascer, gestação. Cair na vida, como diria o Piva. Iluminar-se do imenso, roubando e distorcendo de cabeça Ungaretti. Colocar dinamite no minuto, fazer curto-circuito nas trocas e conversas em sala de aula tem sido meus poemas que somem junto com o fôlego e o vento. Estão aqui na minha memória que é uma plantação cheia de gafanhotos e debaixo da chuva ácida. A carne da linguagem não tem sido uma metáfora.

[LD]: Vamos ficar um pouco mais neste ponto, no cerne da carne da linguagem. Meditar. Eu enxergo duas tendências literárias bastante extremas, sobretudo na poesia mais recente que tenho visto – mas sou só um ponto limitado, decerto posso estar errado. Sobre essas tendências, nem as digo extremistas, mas extremas: de um lado, muita poesia é feita como se fosse a encarnação da Poesia, mais aura que água, mais espírito que matéria-do-poema. Por outro, poesia como qualquer-coisa para transmitir algum estado de humor experimentado pelo poeta, donde textos preocupados com a circulação fácil, a digestão ligeira, a publicidade do poema: poesia bonitinha. Sem lastro existencial, como certa vez ouvi Bráulio Tavares dizer. É claro que existem vários caminhos, e nenhum é completamente só um deles: talvez haja encarnação bonitinha da Poesia, etc. Mas o que quero apontar é isso: dentre os caminhos possíveis, diálogo. Comunicação, como tua resposta acabou de dizer. Comunicação, conversa, toma lá dá cá, troca, escuta. Escuta, essa parte interna do corpo, essa materialidade do sentido. Um caminho do meio, como diríamos os budistas.

Tua poesia é carne e terra de um xamã ancestral, quase totêmico. Muito do que escreve joga a leitura no meio das furnas, da mata, do rio e das outras águas: daí Watsu, teu livro publicado em 2016, vencedor do Prêmio Pernambuco 2015. Ao mesmo tempo, existe aí um quê de experiência, vivência mesmo, como o piripaque que te parou o coração uns anos atrás. Chamo Leonardo Fróes pra te perguntar: essa poesia natural que tu faz, esse caminho do meio da vida, é uma poesia da natureza ou, como Fróes diz sobre o que ele próprio escreve, é poesia da experiência? Aproveita e experimenta, na resposta, escolher um poema pra dar seguimento à prosa.

[JJ]: Comecemos pelo poema:

enquanto a chuva diz
seus muitos nomes,
as pernas procuram
uma maneira inigualável
de reescrever uma e outra vez
a travessia sobre a terra

caminhar nos educa para o desaparecimento
e estas gotas dormem seus dias
em nossas cabeleiras

ainda é possível reconhecer os barulhos
específicos que as cabras fazem
quando estão comunicando
a presença da água?

mil cabras distribuem todos os dias milhões
de sementes em suas errâncias pelas veredas

Agora mesmo, neste poema, é possível
perceber uma planta que nasceu
no meio
dos dois olhos primatas
depois de trazida pela língua
de uma cabra

coloca as verdes folhas
no teu peito e as amamenta
enquanto a chuva canta

***

É preciso reparar nas passagens, nas trocas, nos afetos, nas fricções. Exercitar a percepção para a permanente e vital fluidez, porosidade, interação de tudo em tudo, com tudo. Neste sentido, sinto que a poesia (muito antes e para muito além do poema) seja um território propício para as demandas e dinâmicas relacionais, extáticas, que apresentam um mundo mais que humano. Alterações e viagens no "entre", na ação contínua, no diálogo fundamental que constitui a base para o crescimento orgânico de nossos espíritos. Espírito, sagrado e outras potências como compreensões, outros nomes para a plena imanência, essa que está prenhe de transcendência. É tudo aqui e agora, na carne: a linguagem da vida, a vida da linguagem. Como canta Walter Franco: viver é afinar o instrumento / de dentro pra fora / de fora pra dentro / a toda hora, todo momento.

E aí poderíamos dizer que a afinação, a depuração da afinação, passa pela escuta e pelo empenho numa linguagem em convivência, numa poética da deriva e delírio no cosmos e no caos. Imagino que colocar e recolocar a atenção nesses processos de relações e alteridades, buscar a prática da poesia e dos poemas como criação de espaço e tempo simultaneamente enraizados no chão da história e no sopro onírico da vida, sejam condições férteis para encontrar o caminho do meio, os eixos de mundos possíveis. Ou dito de modo ligeiro, funcionem como alerta contra a plena aderência ao cérebro publicitário de nossa época e contra o escape pura e estritamente ontológico, num sentido de vedação, separação, individualidade. A poesia como esse equilíbrio precário, como esse paciente e constante empilhar de pedras, como essa deambulação sem destino exato, grávida de travessia e espanto.

Mais do que reparar na poesia que eu faço, gosto de atentar na poesia que me faz e desfaz, fia e desfia esses amontoados a que deram o nome de josé juva. E isso não é meramente um exercício de linguagem, correr em círculos, jogar com as palavras. É a busca de uma prática da poesia como maneira mamífera, primata, de investigar e comemorar (também no sentido de lembrar junto) esses magmas dos enigmas, os minérios da memória e os mistérios. Viver é perigoso, já disseram. Também falaram que o poema ensina a cair. Desdobrando estes apontamentos, diria que a poesia, ao menos como tem sido para mim (leitor e poeta), é a fascinante experiência da vida viva, com seus abismos e voos, seus improvisos e acasos, seus beijos, fodas e coices. Vida viva que me forma, devora, dilacera. Não há um "fora" da natureza, mesmo nos contextos de linguagens abstratas, sem referentes imediatos na paisagem animada. Este poema com o qual começo esta digressão é bem este caminho. Estão no impulso dele tanto leituras e outros aparatos culturais quanto o apontamento, a lembrança de processos físicos e de interação entre um corpo aberto e o mundo. Ou melhor, uma tentativa de tradução do múltiplo que há no seio do uno, da unidade que há no peito do múltiplo. Uma tentativa de reivindicar a linguagem poética, seu arranjo num poema, como gesto, como significado sensível (a razão como um órgão) para a nossa espécie e, principalmente, para afetar e reativar nossa percepção da vida viva mais que humana. A escuta e a compaixão no meio da contradição, dos limites, a incorporação da respiração da terra, a própria terra, mais vida. Apesar das inumeráveis dúvidas, mais vida.

[LD]: Bonito isso, porque certeiro: a poesia como equilíbrio precário, como processo de relações, caminho do meio. E já que a prosa apontou pra outras dimensões que não só o poema, quero fechar essa história com duas propostas: que autores, poetas, musicistas, cineastas, primatas dos mais variados – ou outros animais ainda – te fazem a cabeça e o coração? Pode dizer do pâncreas também, fígado e outros órgãos. Se puder, seleciona uns trechinhos de coisas que te servem de referência e baliza pra vida, pra gente publicar aqui nesta entrevista e dar aos leitores uma amostra do caleidoscópio.

A outra coisa é: fecha o papo com uma imagem, com a sugestão de uma imagem. O que te movimenta agora, e o que tu acha que pode animar a memória futura de quem nos leia? Quais são os fragmentos de ideia?

Macaco Encruzilhada na escuta. Câmbio.

[JJ]: São muitas e muitas possibilidades de encontro e encanto, minhas experimentações de leitura (num sentido amplo) se organizam, se espalham como os círculos de água quando jogamos uma pedra no lago, indo cada vez mais longe, mas sempre em relação com suas origens. Figuras como Hermann Hesse, Patativa do Assaré e Cassiano Ricardo foram muito presentes nas minhas primeiras caminhadas com as artimanhas. Alguns passos mais pra frente e incluam também Roberto Piva, Chan Marshall, Kurt Cobain, Paula Duró, Emir Kusturica, Nina Simone, Ana Mendieta, Jim Jarmusch, Janis Joplin, Alejandro Jodorowsky, Nick Drake, Diego Maradona, Walter Franco, Regina José Galindo, Tom Zé, Estamira. E Mircea Eliade e Moacir Arte Bruta e Rolando Boldrin e Inezita Barroso e Yo La Tengo e Kim Kaphwan e Iori Yagami e Toph Beifong e Lemmy Kilmister e Chin Gentsai e Gilberto Gil e Death Grips e Pablo Amaringo. Daqui a dois minutos, a lista já seria outra e é essa dinâmica que me mobiliza. Os nomes que não estão aqui acima também conversam comigo, agem com o que faço. Magma & Amnésia.

A poesia me educa numa sensibilidade paleolítica. Devoração das fronteiras, diluição dos limites, dissipação das classificações. Uma prática de respiração e limpeza, como no banho dos macacos das neves em Shibu Onsen. Imagino não ser preciso reforçar que essa limpeza e respiração não se traduzem num isolamento no quarto e sala do egoísmo e do otimismo ingênuo, no desconhecimento do caos e dos coices e dentes quebrados e da ruína no limite da plenitude do vazio, da garganta aberta da destruição. Sendo assim, continuamos dentro dos fluxos. Anicca.

Talvez as leitoras e leitores do futuro sorriam e pensem apenas: ontem é muito longe daqui. Difícil lançar os dados. Mas o que me anima e movimenta, sem dúvidas, é a permanente possibilidade de diálogo, de troca. Fazer de maneira paciente e prazerosa a jornada de alterações, viagens, deambulações, de conversas que animam a vivência fundamental para que nos tornemos em tudo que não somos, como disse Waly Salomão, essa fome de abraços. "Eu apertava uma árvore contra meu peito como se fosse um anjo", disse o Roberto Piva. E assim quem sabe a poesia seja esta maneira reiteradamente renovada de estabelecer a atenção ao contínuo nascimento do mundo. E assim quem sabe possamos fazer da poesia também essa ponte viva, como fazem os indianos com as raízes de enormes árvores no estado de Meghalaya, a morada das nuvens. Uma prática ancestral e do porvir, empilhar pedras e rir debaixo do céu. Fragmentos de visões, estilhaços de memorabília, pedacinhos das sementes vitais dispersas no sopro das vozes da paisagem animada. Distúrbio Caverna.

alguns poemas:

Jesus está voltando
de suas férias em Acapulco

Jesus está voltando
a falar em abdução

Jesus está voltando
com a formação original
de sua primeira banda de grindcore,
com a oficina de telepatia espontânea,
com a produção artesanal de pranchas de surf

Jesus está voltando
a deixar o cabelo crescer,
e distribuir bolinhas de gude feitas de argila,
a trabalhar como terapeuta do sono e do sonho

Jesus está voltando
a caminhar sem rumo,
a cozinhar deliciosas moquecas,
a cultivar manjericão, rúcula e coentro

Jesus está voltando
de uma temporada no Himalaia
de um inverno nas praias da Califórnia
de uma conversa com Harry Houdini

Jesus está voltando
pra casa dos pais

Jesus está voltando
a subir em árvores
a desenhar na areia
a dormir enquanto voa

Jesus está voltando
apesar de nunca ter ido embora

***

Apenas mais um macaco anônimo
cujo plano era caminhar sobre o oceano

mamãe disse:

espere, leve o casaco
e o riso, a luxúria
das estrelas que saíram
para dançar valsa no escuro

***

mergulhar
as mãos nas águas
deste rio e encontrar
seis ou sete coisas impossíveis
para acreditar antes do café da manhã

e ouvir dentro do barulho líquido
as canções entusiasmadas de um profeta paleolítico
que encontrou as palavras de um pé de jambo
sobre as possibilidades da tranquilidade,
do olhar em fúria e do olhar pacífico
e as virtudes lascivas dos bonobos

***

Expresso: Marina Abramovic encontra Zlatan Ibrahimovic
numa música incidental do Death Grips

Solo ancestral, a poesia não precisa ser uma chave
de fenda, um martelo, um prédio de trinta andares.
Sim, há poetas com peito de pombo escrevendo
para não incomodar ninguém. Sim, há poetas
tramando versos para cuspir na cara do leitor hipócrita,
da leitora hipócrita, por não encontrar lugar pior para cuspir.
Sim, há poetas com sono cuspindo para o alto.

O que é um bom poema?
Não uma armadilha que nos acorrenta.

Vivemos por causa do amor ou da água?
Aí as garotas surfaram no teto do busão
gritando para as senhoras das calçadas:

Quanto custa o desastre?

Já vimos chuva cair sobre o teto da guerrilha,
nossos versos são avenidas de desconcerto
e que os poemas sejam como bungee jumping,
pôquer, queda do cavalo, surf de ondas gigantes

Nunca mais nos separamos, nós e as palavras

Qual a utilidade da vida?

Nenhum medo da morte,
Nenhum medo da vida.

O que é um bom poema?
Não uma conversa que começou agora.

Uma dedada para reabrir a ferida
Esquilos e centauros, eis os poetas
Enguias e centopeias, eis as poetas

Movidos a silício, pó de vidro e emoções:
os estatutos do amor.

Ratos de Porão é mais importante que Augusto de Campos
Para escrever este poema vocês levaram trinta e dois anos.

Um pé cheio de memórias, um colchão cheio de mitos.
Quando vocês morrerem enterraremos os caixões

longe dos corpos

Uma mulher entre o avião e o cordão umbilical
Uma criatura imensa desde a infância
Um rapaz com as mãos mergulhadas nas alegrias

Nossa imaginação é nossa cachaça
Escrever e jogar sinuca são a mesma coisa
Fazemos na escrita o mesmo que na vida: erramos.
Não há outro jeito para aprender a ver no escuro.

Lamber as línguas de fogo do tempo,
o que nos liga à vida é o amor
de um vaga-lume pelo chão do abismo.

recomendações audiovisuais:

Cat Power – Speaking for trees
https://youtu.be/RB0GDcOrOrM

Death Grips – Government Plates
https://youtu.be/nivprMp9fxQ

 

 

Leandro Durazzo é antropólogo e tradutor. Autor de Gestação de Orfeu: profecia e transcendência na poesia de Jorge de Lima (ensaio, 2013), Tripitaka (poesia, 2014), Histórias do Córrego Grande (prosa, 2015) e do vindouro Cantos de Natal (poesia, 2017), vive entre estrada e praia. Integra a antologia incompleta da poesia brasileira organizada por Adriana Calcanhotto, É agora como nunca (2017), e deambula disperso em outros espaços e publicações. Budista, trabalha com povos indígenas e religiões orientais, nem sempre ao mesmo tempo.