SEÇÕES

editorial


a ideia é para ser simples:

construir uma comunidade a partir da diferença. um espaço comum onde se convive com a diferença. com o outro. também o outro de si mesmo.
selecionar textos a partir de uma chamada aberta é se lançar violentamente nesse projeto de comunidade. não há nada de teórico aí. ler mais de 500 e-mails com textos radicalmente heterogêneos é praticar essa comunidade. uma prática radical.

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quando disposto a fazer uma travessia, o ouriço da terra se fecha, se arma. o recolhimento delimita um território. o recolhimento é um ato violento.

lançar-se no trajeto violentamente:

Você ouve a catástrofe vir. Desde então, impresso sobre o próprio traço, vindo do coração, o desejo do mortal desperta em você o movimento (contraditório, está me acompanhando?, dupla restrição, imposição aporética) de proteger do esquecimento esta coisa que ao mesmo tempo se expõe à morte e se protege em uma palavra, o porte, a retração do ouriço, como na estrada um animal enrolado em bola. Gostaríamos de pegá-Io nas mãos, aprendê-lo e compreendê-lo, guardá-Io para nós, junto de nós.

Você ama - guardar isso em sua forma singular, digamos na insubstituível literalidade do vocábulo, se falássemos da poesia e não somente do poético em geral. Mas o poema não se acomoda em meio aos nomes, nem mesmo em meio às palavras. Antes de tudo, está jogado pelas estradas e nos campos, coisa para além das línguas, ainda que aconteça de lembrar-se nelas no momento em que se junta, enrolado em bola junto de si, mais ameaçado do que nunca em seu retiro: ao acreditar defender-se é que se perde.

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traduza-me, vela-me, guarda-me um pouco mais, salve-se, deixemos a estrada.

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nos é claro o desamparo que constitui essa espécie de experiência.
e estamos desamparados – matou-se na rua joaquim palhares, no bairro do estácio, na cidade do rio de janeiro, a 4,2 km de onde estamos agora. sabe-se quem morreu. mas sequer tiveram a decência de nos dizer quem matou.

afinal, já nos levaram tudo: marcos nascimento, valeska torres, julia manacorda, leticia carvalho, pedro cassel, matheus torres, natasha felix, janaína abílio, brenda k. souza, stefano calgaro e sergio ortiz de inhaúma estão desamparados.

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Vivem sobre as árvores, em matas e capoeiras. Têm hábitos noturnos, e em geral dormem durante as horas quentes do dia. Às vezes podem ser vistos de manhã ou à tarde, deslocando-se com movimentos lentos. [ou então, sonic, the hedgehog, engole as sete esmeraldas do caos e assume seus olhos vermelhos]. São inofensivos, mas quando irritados ou amedrontados, não fogem: esperam o inimigo eriçando os espinhos que acabam em ponta semelhante à seta e podem penetrar ou se prender na pele do agressor, bastando que este neles se encoste. Muitos animais, dentre os quais aves de rapina, cachorros e gatos-do-mato parecem desconhecer esta arma de defesa e após atacá-los são, muitas vezes, encontrados com espinhos encravados no corpo.

Alimentam-se de folhas, frutos e raízes. Gostam de vários tipos de cocos silvestres que podem levar para alimentar os filhotes. Para coletá-los agem de maneira interessante: rolam sobre os frutos maduros caídos no chão conseguindo assim que eles se prendam aos espinhos resistentes do dorso.

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a garupa finalmente arrumou um espaço físico, um dorso de pelos duros. uma pequena sala no centro do rio. mais do que nunca, estamos desamparados.

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e diante destes poemas, só poderíamos partir do desamparo. eles nos exigem o desamparo. só assim traçamos diálogos possíveis entre eles. as próprias linhas de força dessa comunidade de textos guiam o caminho.

uma perambulação solitária:

Estou encarando o muro por trinta minutos agora
mapeando o que tenho perdido quando fecho os olhos
em vigília estaria perambulando pelos cantos da casa
entrando em outros cômodos
para criar mentalmente
mini percursos
e eles vão causar saudade
terei que parar no meio do caminho
para descansar da viagem
no corredor ou no armário da cozinha

                                                             no pequeno gabinete de livros infantis
                                                             pontos mais ousados como o bidê verde ou
                                                                                                                               pela máquina
                                                                                                                              de lavar roupa

e regressar ao quarto.

montar a ideia para o editorial requer tédio
os dedos cambaleando pelo teclado
essa hora, requer um copo de café
outro 
1namoro de soslaio com a geladeira
pqno flerte saudável com 
toda majestade que a tábua de frios tem a oferecer

certa patifaria

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na beira da estrada, ainda outros minipercursos: entre a mais científica das naturezas, aquela sobre a diarréia das vacas, aquela que cataloga os pássaros, e o boulevar, o prédio da encol e a presidente vargas, fala-se afinal da mudez e do toque dos dedos.

e depois umas miudezas que salvam, achadas quase sem querer, compõe finalmente a seção de achados. apenas porque são mesmo nossos suspiros. ainda algo por dizer sobre o amor.

percebe o cansaço no tom da minha voz?

mas resta ainda algumas forças: nesta edição abrimos uma nova seção, a drive in, que, diferente de todas as outras, não tem seu conteúdo selecionado a partir da chamada aberta. videoartistas – podemos dizer ainda: videopoetas – foram convidados a partir da curadoria do poeta e cineasta frederico klumb. e o fred anota como chegar: atravessando uma poesia inespecífica que não cabe em si mesma.

e designer e artista gráfica tatiana podlubny, editora da fada inflada, aceitou nosso convite para criar as imagens que compõem o projeto gráfico desta edição. ela então fez dez desenhos inéditos pra edição – e que admiração temos por tatiana. neste gestos, nossos frutos maduros caídos no chão: 

Quando a Garupa me convidou
para ilustrar a oitava edição da revista,
fiquei muito feliz.
Além dos motivos óbvios
– É poesia
É de peso
É feita com entusiasmo e amor incomuns –,
um a mais:
ninguém disse “é sobre isso”.

Os poemas e textos ainda não tinham sido selecionados.
Desenhei sem saber. Não li uma linha.
Portanto não são ilustrações,
não falam sobre um ou outro poema,
não se reportam a qualquer palavra ou coisa.
Queria conversar com as linhas que não li
sem dizer nada, ou melhor, dizendo no desenho
o que a linha e a mancha e o plano
podem dizer, movida pela possível paridade
de intenções (ainda ocultas)
no texto e na imagem.

O jogo começa agora:
façam as conexões!
Procurarei fazê-las também,
buscando a estranha afinidade
que certos poemas têm com
os relevos,
os perímetros,
as manchas de cor.

                                               [tatiana]

esta é a oitava edição da revista garupa: quatro anos e uma força ainda.