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Festa de família e o dogma 95

por Gabriel Pelluso


O dogma 95 foi um manifesto artístico-cinematográfico lançado, não coincidentemente, no ano correspondente ao número de seu nome: o de 1995. Digo não coincidentemente, pois este foi o ano em que o Cinema completou um século de vida. Seus criadores, os cineastas dinamarqueses Lars Von Trier e Thomas Vinterberg, acreditavam que “a tempestade tecnológica estava ordenando o resultado de elevar a cosmética a Deus, já que, por usar a tecnologia, qualquer um, a qualquer momento, poderia varrer os últimos grãos da verdade no mórbido abraço da sensação”; em outras palavras: toda a pirotecnia das produções hollywoodianas estava tirando a essência do cinema e trocando-a pela mera sensação dos efeitos especiais. Além disso, os referidos diretores pensavam que havia muito tempo o cinema não passava por uma reviravolta em suas estruturas, como a que a nouvelle vague proporcionou, por exemplo, em sua época. Para eles, tudo estava tendendo muito ao comercial/industrializado/cosmético.

Apresentado em Paris, durante a comemoração do centenário do cinema, pelo próprio Von Trier, o manifesto apresentava em si, além de 10 regras (“votos de castidades”, como chamavam seus criadores), uma profunda ironia e senso de provocação. Como um manifesto com ares vanguardistas poderia ser dogmático, como sugere seu nome? A ideia central do dogma 95 era a de um cinema antiburguês, anti-industrial, anti-ilusionista e antiautoral. Um cinema em que a história e a interpretação dos atores fossem valorizadas, em lugar das técnicas extrafilmagem, feitas na sala de montagem. Em outras palavras, o que eles estavam querendo dizer era: faça você mesmo as suas regras e crie o seu próprio jeito de fazer cinema. Isso me lembra muito algo que aconteceu aqui, no Brasil, pelos idos dos anos 1960, com o cinema novo, cujo lema era “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”.

A ideia do anti, do contra, de ter regras sólidas para produzir pode até sugerir determinada prisão criativa para quem está por trás das câmeras. Porém, o fato de, por exemplo, não poder usar som extradiegético, ou não poder usar a câmera de outra maneira senão nas mãos pode liberar bastante a criatividade de quem está produzindo o filme. Basta pensar que essas regras – que eu gosto de pensar como obstáculos – podem funcionar como um jogo, em que o objetivo é fazer o melhor filme possível com o menor número de recursos,

Bom, não estou, com isso, afirmando que a ideia principal do manifesto era essa. Com isso, quero apenas atentar para o fato de que os primeiros diretores do movimento, Von Trier e Vinterberg, conseguiram fazer filmes fabulosos, seguindo os “votos de castidade” registrados no manifesto dogma 95. Os filmes são Os idiotas (Von Trier) e Festa de família (Vinterberg), ambos lançados no ano de 1998. Focarei, neste texto, no segundo filme citado, o que teve maior visibilidade dentre os filmes que compõem, por assim dizer, a gênesis do dogma 95.

Estilisticamente falando, Festa de família é um filme estranho, talvez porque estejamos acostumados com a estética limpa e clara dos filmes norte-americanos e, por conseguinte, mais comerciais. Aqui, pelo contrário, prevalece uma câmera digital, sem apoio de tripés ou travellings, usada da melhor maneira que a criatividade do operador de câmera pode fazer. Essa característica estilística (a qual estou chamando estranha) revela-se grande aliada não só da fotografia do filme, mas também contribui para toda a sua história, para todo o seu enredo. Como todo filme dentro dos padrões do dogma 95, Festa de família é de tema polêmico e visceral e procura questionar os códigos morais da sociedade em que vivemos. É um filme agressivo e de cenas fortes: um patriarca, aparentemente respeitável, está completando 60 anos de idade e sua não menos respeitável família está dando para ele uma festa em seu hotel. No meio do jantar, porém, seu filho mais velho faz uma revelação a todos os presentes. Quando crianças, ele e sua falecida irmã eram estuprados pelo pai, e com o consentimento da mãe. A partir daí, o que vemos é o declínio moral e psicológico de uma família que vive de aparências muito fortes e que, por trás disso, esconde mazelas de racismo, preconceito, depressão, compulsividades e vícios. Podemos enxergar, através do filme, uma crítica a toda instituição familiar e suas hipocrisias e preceitos fundados em dogmas falidos e moribundos. Em outras palavras, o filme descortina um nicho social do qual todos fazemos parte, para mostrar o aspecto enfermo da sociedade e o lado caótico do ser humano.

Com isso, as regras do dogma 95, que proíbem o uso de iluminação artificial, o uso de tripés ou travellings e o som extradiegético, contribuem para a atmosfera do filme. A fotografia pálida de luz estourada e a câmera inquieta nos fazem lembrar filmagens caseiras, de batizados ou casamentos, o que nos dá uma impressão de intenso realismo e nos transmite uma inquietação sufocante à medida que a trama se desenrola.

A interpretação dos atores, não menos realista, é uma questão à parte. Talvez a simplicidade na montagem tenha gerado poucos cortes no filme, o que deu fluidez e continuidade para a interpretação dos atores, ajudando muito a valorizar a verdade contida em cada personagem. O espectador de fato acredita em seus sofrimentos, angústias e medos. Explico-me: em uma produção, digamos, mais comercial, os cortes são mais frequentes e as cenas são gravadas de maneira mais desconexa, o que, eventualmente, deve interferir na interpretação dos atores, pois é realmente complicado seguir a construção de personagens repletas da complexidade humana, em meio a tantos cortes e paradas dentro de um set. Com a técnica mais simplista e real do dogma 95, a interpretação dos atores deve seguir de maneira mais natural e contínua, sem tantas ordens para parar e continuar, como se fossem máquinas que, uma vez ligadas, começassem a interpretar de maneira automática. Seria uma interpretação mais orgânica, por assim dizer. Não só esse fator, mas também a locação única, a iluminação não artificial e, de fato, uma equipe menor, devem contribuir para uma concentração mais intensa e um desenvolvimento mais meticuloso da personagem, o que gera interpretações assustadoramente convincentes e realistas.

Talvez, também, a ideia de um cinema antiautoral, em que o nome do diretor não pode constar nos créditos, ajude para uma democratização da obra, fazendo com que todos exerçam seus trabalhos de maneira competente e criativa. Como já mencionei, enxergo o dogma 95 como – além de uma provocação – um jogo, em que a grande graça é pôr à prova suas amarras para assim se libertar delas e produzir o melhor filme possível sem usar determinados elementos. É como se um poeta dissesse: “hoje vou escrever meu melhor poema, mas sem usar palavras que tenham estas e aquelas letras”. É um desafio.