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entrevista


Manoel Ricardo de Lima

Poderíamos enumerar suas diversas atividades, mas no decorrer da entrevista elas aparecem com muito mais peso e sentido. Prefiro dizer que Manoel é uma pessoa carinhosa e inquieta. Nos conhecemos entre 2010 e 2011 – há poucos e densos anos – quando começamos a cursar letras na Unirio. O professor nos dava uma cadeira de literatura no período colonial logo no primeiro período. [e só pensávamos como seria maçante todos aqueles textos arcaicos na segunda-feira de seis às dez da noite, depois do dia de trabalho]. Mas o professor era poeta. Logo de início: O sequestro do barroco, de Haroldo de Campos, e Gregório foi a descoberta. Depois tudo aquilo – nossas primeiras letras, o verbo – veio cheio de outras e outras descobertas: tudo já estava ali e nunca havíamos visto: Manoel descortinava a palavra. 

 

Juliana Travassos - Confesso ser uma tarefa difícil te entrevistar, Manoel. Nós, seus alunos, seus amigos, ouvimos a sua voz de sala de aula em muitos dos seus livros e, outras vezes, essa voz do professor se silencia e uma outra aparece. Gostaria de começar, então, com uma pergunta que me surgiu a partir dessa minha experiência de leitura: seus livros são todos bastante afetivos e ainda mais políticos, alguns deles, como os de poema reunidos-rearranjados em geografia aérea, me parecem quase sussurrados, como quando se conta um segredo, mas um segredo de guerra [se é que há algo para se contar sobre a guerra que não seja segredo]. Sei (porque aprendi muito com isso) de seu enfrentamento político-poético no mundo. E por isso te pergunto em que medida sua escrita é pessoal, em que medida ela é biográfica? Quanto da sua experiência diária entra nesses poemas ou prosas ou ensaios? 

MRL- Todas as vezes em que me sinto afrontado, Juliana, principalmente por algo ou alguém que desconhece minha trajetória de formação e política, de fato, minha resposta passa, primeiro, por esse lugar do enfrentamento, depois por um abandono convicto. E fico feliz quando a tentativa de construção de uma singularidade é percebida, tocada, de algum modo [por isso adorei a pergunta]. Isto não só porque sou professor a mais de 25 anos [só na universidade – UFC, UNIFOR, UFSC, e agora a UNIRIO – estou desde 1998], mas porque tomo a tarefa da e com a arte sempre na perspectiva da formação. Primeiro, como um empenho crítico [arquivo, biblioteca e o mundo da ação], depois como uma tarefa política que é quando toda ação se adere ao corpo como uma aventura da imaginação e porque, me parece, é no corpo que mora um saber que tem a ver com um “de onde se é” [há algo entre o homem e a terra: uma luta, uma hospitalidade ao informe]. Goethe dizia que no princípio não era o logos [que se traduz na tradição cristã-judaica por “verbo”], mas a ação; gosto disso. Foi assim que montamos e mantivemos o ALPENDRE, um espaço não-institucional, num galpão de 600m2, em Fortaleza, durante tanto tempo: para formar diante de um pensamento da e com a arte. Só consigo pensar e ter interesse agora, quando o mundo se rasga numa detonação de tudo, numa escrita [ou ex-crita] que seja radical e constantemente tomada como uma ação de reinvenção da vida contra a burocracia do amanhã. E isso tem a ver também com a quantidade de coisas que tento fazer por onde é possível algum movimento de interferência. Entendo que é importante desmontar toda biografia para ir de encontro a essa fórmula fácil da vida agora como uma “identidade sem pessoa”, quando a Máquina é o que nos reconhece, nos vê e garante que estamos vivos. Penso, seguindo um pouco o que diz Levinas, numa “individualidade anônima”, o “para-o-outro radical”. O que mais me interessa é o que nunca sei, ou seja, tudo ao meu redor que, num estalo de observação, pode me colocar de cabeça pra baixo e, de algum modo, desmontar essa Máquina. Como Lenz ou como aquela dança que tanto interessava a Kleist, por exemplo: a que vem e se modula numa zona de não conhecimento.

 

Ju - Você reúne muitas atividades: é nosso professor universitário, mas também crítico de literatura e artes, produtor cultural [organizando muitos seminários], palestrante, editor e é roteirista e poeta. Quando Aníbal Cristobo te perguntou sobre essas suas muitas atividades, você disse que, com todos os “passeios”, se sentia professor. Já em resposta a Annita Costa Malufe, numa entrevista dada a Germina, disse que acha “uma tristeza e um desagravo com o mundo esse emperro para a especialização do conhecimento”. Como professor, sei que luta contra esse enclausuramento do conhecimento, mistura filosofia, arquivologia, cinema, artes plásticas e literatura em suas aulas. Gostaria que falasse um pouco dessa sua experiência. Se, nesse mundo que espera cada vez mais especialistas, já esbarrou em dificuldades; e o quanto foi importante para sua literatura, mas também para seu desenvolvimento pessoal, quebrar essas barreiras. 

MRL- Nasci no Piauí. E costumo dizer, numa paráfrase de Rubem Braga, que nascer no Piauí ou ser fêmea de cupim dá no mesmo. E venho de família muito pobre, e tudo, a partir daí, é a barra-pesada. Mas essa é também a barra da vida pra todo mundo, tenho impressão. A vida é uma porrada duríssima o tempo inteiro. Cumprir esse peso com toda a alegria é o mínimo que nos resta, penso nisso como uma circunstância severa de aprendizagem constante e aberta a todos os lados, formas de escuta. E isso vem da cena de leitura mais forte e mais presente: meu pai, que era um homem simples e muito silencioso, do sertão, filho de sertaneja com um pescador dono de pequenos barcos que entravam o mar com força, e que sabe-se lá como ou por onde, estudou tão pouco, era um apaixonado por matemática e dicionários. E ele lia muito, gostava de tomar notas, tinha papéis, cadernos, cadernetas. Tinha muitos interesses sensíveis que se pautavam numa dignidade encantadora, como olhar o céu por horas a fio, observar e conhecer os estados informes da natureza, a forma e o movimento dos objetos e os desenhos das coisas, contar histórias muito devagar do “tempo em que os bichos falavam” etc. Era como se fosse, grosseiramente, naquele jeito calado e sem drama, um homem do renascimento, aquele que aparece na história diante do pórtico de Filippo Brunelleschi. Essa é a cena ancestral de minha formação e responsabilidade ética, inclusive. Que tem a ver com o que chamo de “um abandono convicto” daquilo que é a disputa pelo controle, pelo negócio, pelo dinheiro, pela picuinha rasa. A vida é um pouco mais larga, creio, exatamente porque não é nada, não faz sentido algum, é só um extravio. E aí, uma questão que me ronda muitas vezes se parece com aquela de Eric Dardel: algo como até onde pode ir a humanidade do homem com esse fim egóico, mesquinho, curto e pouco? Isso, muitas vezes, tenho impressão, tem a ver com essa especialização desvairada que transforma o mundo [desde a primeira esfera coletiva] num espaço de linha reta, muito próprio da técnica moderna, sem contaminação, e vinculado a um saber imediato, burocrático e pouco festivo. E sem a festa, sem o fare la festa, o que nos sobra? Tento fazer com que todo o meu trabalho, acho, ao menos quero que seja assim, venha desse impasse com as formas de estar no mundo o tempo inteiro diante daquilo que não somos, o outro, e dessa travessia deslocada e deserta que tem a ver com um corpo que é obrigado a partir para não morrer.

 

Ju - Na terceira edição de as mãos e no seu recém lançado geografia aérea, você opera uma montagem com as edições antigas dos livros, uma espécie de jogo, que desloca o texto, o tira de qualquer zona de conformação, o transforma numa coisa completamente diferente das edições anteriores. Essa operação cria uma espécie de arquivo-móvel, algo que não se estabiliza. Ao mesmo tempo, sabemos que você já morou em muitas cidades pelo Brasil, como Fortaleza ou Florianópolis, tão distantes culturalmente, e agora aqui no Rio. Você diria que o procedimento poético que você operou nesses livros reflete uma postura de enfrentamento às estruturas sociais cada vez mais estáveis? Existe alguma relação entre as mudanças de uma cidade a outra e as mudanças de uma edição do livro a outra?

MRL- É um pouco o que lhe disse antes, acima. E acho que tem a ver sim, imagino que tem. Até porque não entendo a literatura e a arte como a constituição de um monumento nem, muito menos, de qualquer institucionalização. Isto aí, me parece, é muito mais uma conformação com os mecanismos de funcionamento e controle do mundo, da vida, ou seja, poder. A Silvina Rodrigues Lopes diz que estamos diante de uma adaptação constante dos escritores às condições institucionais dominantes e ao mercado, e que isto é consumo no nível de qualquer outro artigo de supermercado. Diz ainda que essa adaptação nega a anti-institucionalidade em nome da acessibilidade da literatura ao grande público, o que corresponde à negação máxima de qualquer dimensão inconformista. O “grande público”, diz ela, “só pode ser composto por gostos esclerosados, pelo que há de mais resistente à mudança, e por conseguinte pelo que há de mais anti-artístico, a negação do movimento. Aquilo que se destina ao grande público é a espetacularização, que esteriliza ao colocar a diversão como substituta da estranheza, tornando-se eficaz na relegação do humano para o nível mais triste da vida animal - a domesticação.”
Estou fora! Seria praticamente um contrassenso fazer o meu trabalho nesse percurso de construção da lei domesticada. Por isso é importante dizer que ainda faço meus livros por uma editora pequena como a 7Letras, que é muito atenciosa com meu trabalho, porque o Jorge [Viveiros de Castro, o editor] parece gostar do que faço e edita meus livros pela conta e risco dele, topa os meus projetos e compõe esse jogo sem me cobrar nenhum vintém. Todas as vezes em que trabalho nesses textos, penso nisso como uma modulação de um encontro que eles provocam como um convite a fazer deles outra coisa. É uma responsabilidade desinteressada para tentar tocar outros significados do sentido naquilo que, de todo modo, poderia se fixar e fixar monopolizações de leitura, de memória. Se literatura é jogo, e se o jogo implica num desmonte da hierarquia e das constituições de consumo e poder, este é o traçado que me interessa. E isto é, também, um desejo de viagem, de deslocamento do corpo, torná-lo mais vulnerável e inseguro, morar mais perto do estranho e da distância, por isso ando e tenho morado em algumas cidade tão diferentes e tão desligadas culturalmente, há uma provocação que vem desses lugares para interferir em todos eles, às avessas.

 

Ju - Em a forma-formante: ensaios com joaquim cardozo, encontramos um movimento duplo de estudo: ao mesmo tempo que existe grande liberdade interpretativa (uma escrita com e não apenas sobre o autor), é visível que ali há uma pesquisa séria e profunda, uma leitura demorada e atenta que escutou as obras. Cardozo traz em seus textos uma linguagem objetiva e clara, mas você parece revirar essa superfície calculista do engenheiro e revelar uma outra camada significativa. Logo no início do livro, você comenta sobre uma alegria nada óbvia de Cardozo, uma alegria melancólica que se traduz na metáfora de Petrarca contemplando a paisagem. Mais à frente, a ideia de paisagem retorna nas cercas que demarcam as fronteiras do sertão, os limites tracejados no infinito. Essas noções de que fala – a paisagem, a fronteira, a alegria – são recorrentes também na sua poesia. Você diria que, depois de anos com Cardozo, nesse movimento de leitor e pesquisador, a voz do poeta-engenheiro influenciou a sua obra? Poderíamos dizer que ele é uma das suas maiores influências? Se não, que autores modernos você elencaria como as vozes ocultas (ou não) de sua obra?

MRL- Joaquim Cardozo é muito importante para mim porque foi um encontro com uma engenharia do pensamento para o homem, com uma ação no universo do pensamento. Os interesses dele por física, matemática, astronomia, filosofia, artes visuais, poesia, línguas, geografia, história, livro, engenharia etc. redimensionam muito a perspectiva da distância e da extensão na modernidade brasileira, algo mais perto do semiárido. É mais ou menos como aquela ideia que gira em torno de Walter Benjamin, a do “homem-universo”. É disso o que mais gosto, do pensamento que vem do poeta, do poeta que se arma com o pensamento [e não entendo poeta como um fazedor de versos, mas poeta como aquele que reinventa planos de possível porque gosta de pensar com força, mesmo se é um pintor de paredes, um cientista de robótica, um entregador de pizza, um estivador do porto ou alguém que apenas gosta de conversar etc.]. E aí, muito mais do que o simplório da fronteira, o confim; muito mais do que a paisagem, como linha fixa cartografada pela encruzilhada, o movimento e o impulso; e a alegria como um vetor de voo com os pés firmes no ar [uma geografia aérea]. Ler o que não foi escrito, ler o livro ao lado, armar séries imprevistas, ser atravessado pela aderência do mundo é, me parece, impor-se contra a guerra e a máquina da conformação estéril. Diante disso, acho que vocês mesmos podem desenhar quem, mais ou menos, dentro desse plano de composição, me interessa.   

 

Gab - Diante de uma produção de poesia obscura, ou seja, uma produção que não chega às mãos do público jovem em formação com facilidade, mas que precisa ser de algum modo “caçada” pelo leitor, você acredita que hoje, no Brasil, podemos (e tão só podemos) falar de um movimento poético “underground”? Você acha que a poesia deve ser esta (alguma) coisa inalcansável de fato ou você pensa que ela deve ser disseminada em escolas, comunidades e sobretudo na vida dos brasileiros? Se sim, qual você diria ser a melhor maneira da poesia ser disseminada, ensinada e incorporada no cotidiano do cidadão médio?

MRL- Outro dia perguntei a um gerente de livraria porque na estante de literatura brasileira só havia, basicamente, livros de duas editoras. Ele, quase sem graça, me devolveu dizendo que é porque, também basicamente, são as editoras que mais têm lançamentos, que são mais premiadas e que, por isso, se impõem sobre o balcão do comércio. E, imagino, quando me disse isso, na mesma hora, ele entendeu porque a expressão “balcão do comércio” rege toda essa circulação. E isto faz com que elas sejam as mais premiadas porque há aí uma força absurda e violenta chamada dinheiro. Não à toa li outro dia alguém dizer que a editora tal vendeu os livros de fulano de tal para as editoras estrangeiras X e Y porque o tal fulano tem “competência literária”. E eu que achava que o bom escritor era muito mais o que escrevia mal, errado, errante, com incompetência, o desviado do mundo pronto, o de moral zero [como dizia o Drummond] etc., dei com os burros n’água. É preciso [este verbo quase fascista] ter “competência literária”. Acho que é por isso que ficou muito chato entrar em qualquer livraria hoje, porque são sempre as mesmas coisas, os mesmos livros, os mesmos nomes. Tudo tão sem graça, tão sem força, tudo tão competente, tão sem crime.
A Silvina, que já citei antes, diz que estamos diante de um projeto de informação (uma máquina de produção em série) e não mais de formação; é aquele projeto que desfaz o caráter da literatura como um elemento perturbador da estabilidade do conhecimento do mundo. Por outro lado, diz ainda que o ensino da literatura nos exige um “tempo próprio, que nada tem a ver com a circulação de informações, um tempo de análise e de construção de perspectivas”. E completa afirmando que o ensino não pode ser convertido em administração de um capital simbólico ou no adestramento do uso de técnicas, mas sim possibilitar um desenvolvimento constante do conhecimento por dentro da condição paradoxal da literatura: “preparar para a sua própria negação, a negação de ideias feitas, qualquer que seja o seu estatuto”.
Mas se a poesia, Gabriel, pode ser lida/vista como uma disseminação indefinida do sentido ou como uma destituição [queda, sintoma] é porque, me parece, como aquilo que re-expõe o que resta, ela comparece num mise-en-abyme. Lembro de Anaximandro, que é muito mais contemporâneo nosso do que qualquer escritor desses de feira ou de beira de vitrine de livraria, que defendia o sacrifício do corpo vivo de toda a terra para a construção de um pensamento, de um trabalho, de uma obra em estado de porvir. Difícil, não? Sim, muito. Mas essa é a nossa tarefa da e com a alegria. 

Parabéns pelo projeto bonito, esta Garupa. E muito obrigado a vocês, pela atenção, este acolhimento radical.