O espetáculo teatral O Processo, do grupo Teatro Voador Não Identificado, com dramaturgia minha baseada na obra de Franz Kafka, parte de um mecanismo muito simples: equiparar cenicamente a situação do ator principal com a vivida pelo personagem Joseph K. No livro, K. é acusado de um crime sem saber que crime cometeu; na peça, um ator é convidado a participar sem texto, sem figurino e sem ensaio.
Esta proposição, sem maiores complexidades, coloca em cheque diversas questões relativas ao teatro e à arte. De cara, o que se percebe é que O Processo tende a ser um espetáculo “ruim”. Digo isso na medida em que, em diversos momentos, é possível que dois atores falem ao mesmo tempo, ou estejam de alguma forma fora da luz, ou realizando uma cena que não faça muito sentido. Seria impossível, ou pelo menos assim parecia, que, ao colocar um ator convidado sob essas condições, as coisas pudessem dar “certo”. Aí é que entramos em toda a potência do espetáculo.
O Processo não foi feito para “dar certo”. Seu projeto não tende a uma “ordem estética das coisas”. Ele desmonta, inclusive, à instância exposta acima de “teatro bom e teatro ruim”. Tudo que se desenrola em cena faz parte de sua própria estrutura: sua incompletude, sua impossibilidade e seus percalços são sua potência, uma vez que, assim como algo pode e sempre vai dar errado, um milhão de possibilidades de encontros mágicos e momentos imprevistos belíssimos poderão acontecer.
Após a primeira temporada, percebemos que das 16 experiências realizadas, aproximadamente 12 foram muito boas, sendo dentre elas 8 espetaculares. As demais, aconteceram da maneira esperada, sem muitos riscos ou surpresas. Apenas uma vez o espetáculo não aconteceu como obra e nos expôs nosso limite: o jogo. É preciso jogar. Ouvimos de um dos atores o relato de que: “o pesadelo de todo ator – entrar em cena e não saber o que falar e o que fazer – virou sonho”. Ou então, uma fala ainda mais radical: “Depois d’O Processo, não faz mais sentido assistir um espetáculo em que todo mundo ensaia”.
Acontece que O Processo exibe para o público algo próximo do que os espetáculos esportivos fazem. A plateia assiste sem saber como será o andamento, sem saber se o jogo, ou a luta, ou a corrida, serão bons; mas está ali, ao lado, acompanhando. Torcem, mais do que assistem. Ou até podem torcer contra, quando a empatia logo de cara não cola. É que, às vezes, o santo não bate.
No decorrer do processo de O Processo tivemos inúmeras possibilidades de tentar minimizar esses erros. Poderíamos aumentar as instruções recebidas pelos convidados (que são apenas três: dizer quem é, que não sabe de nada e qual seu personagem), municiar os atores que ensaiam com maior controle sobre a cena, construir uma dramaturgia menos esponjosa e até, uma estrutura mais fechada. Tudo foi sendo, passo a passo, descartado.
O projeto tinha a ambição de colocar em cheque todas essas questões: público, cena, texto, ensaios e, inclusive, a literatura kafkiana. Quase nada envolvendo O Processo foi feito de maneira tradicional a não ser, talvez, a produção, uma vez que a instituições que envolvem o teatro se aproximam muito da obra literária de Kafka.
É por isso que a peça, de certa forma, pode ser um espetáculo “ruim”. Não precisamos ter o objetivo de fazer dele algo bom (e acho que ninguém deveria, na altura do campeonato artístico), não precisamos “envolver o público” nem com críticas bretchianas, nem com narrativas stanislavkianas, não precisamos sequer fazer que se encerre por dentro de si próprio.
O Processo, apresentado por diversas vezes, nos ensinou mais do que aprendeu. Como teatro é mais espectador do que obra, como cena é mais ensaio que apresentação, como texto é mais improviso do que obra-prima da dramaturgia. No entanto, não abre mão de teatro, cena e texto. É possível que todas as perguntas levantadas em um dia de espetáculo, por um ator convidado, sejam respondidas apenas pela apresentação seguinte, com outro ator e que, assim, se necessite uma leitura dupla, tripla, quádrupla, para uma apreensão mais rica. O Processo, como todo processo, não se realiza em um dia só: ele se torna, aos poucos, em veredito.
Fechamos a primeira temporada cheios de perguntas, cheio de questões e impressões absolutamente díspares: para uns, fizemos um mau teatro, para outros, inovamos, fomos radicais. Quem sabe todas essas respostas não estejam nesta próxima temporada?