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um poema

por ana carolina assis


ultimamente eu
só tenho me interessado
por poemas que falam de um corpo
eu penso não tenho cara
de chegar e falar um poema
que não tenha um corpo
era melhor eu trocar de cara
calar e ler a mulher que corta da natasha
a mulher pelada da carla
eu só consigo pensar
seria preciso um corpo
pra estar de pé
olhar na sua cara
entrar no metrô
entrar num ônibus
sair desses lugares
pegar com as mãos a boca um corpo
e dizer qualquer coisa
que vibre em outro corpo

penso na bruna a 70 km do mar
na estela no alto da serra
e penso não tenho corpo suficiente
pra olhar na sua cara mas olha

não é que eu tenha deixado
de lavar as calcinhas
com sabão de coco
e água fria de tanque
não é que meus buracos
estejam lacrados
é que eu tô seca
e fico repetindo essa merda
cara, eu não tenho corpo pra isso
pra olhar na sua cara
e dizer qualquer coisa como

você está me comendo tanto
pelos olhos que eu já não
tenho de onde tirar força
pra te alimentar


é que ultimamente molho e seco
calcinhas no seu tanque
na sua cama
e na cara
de ninguém
ainda que imagine morder um corpo
com esse ventre sem dentes com esses
dedos comidos até o sangue
te vejo acender os copos
com água de filtro
seus dedos secos e largos
craquelando
longe do meu centro
eu penso é coletivo isso que vibra
e grita na varanda
tem corpo e cara esse líquido
que vem
e é quente



ana carolina assis é poeta e educadora. cursou mestrado na UFF, pesquisando poesia, corpo e esquizofrenia em Adília Lopes e Stela do Patrocínio. construiu a muitas mãos a Oficina Experimental de Poesia (2011 – 2018) e publicou com el_s o Almanaque Rebolado (2017, Azougue, Cozinha Experimental e Garupa). tem poemas publicados nas revistas Gueto, Escamandro, pela iniciativa Mulheres que escrevem, no site Hysteria e nas antologias Cadernos do CEP e Alto-Mar (2017, 7Letras, org. Katia Maciel). publicou o livro de poemas a primavera das pragas (2019, 7letras).