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sonha pra não dormir


Ouça um bom conselho que é pra eu te ver feliz

por Aline Rocha

Querida Dani,

1.

Ando pensando sobre duas canções.

A primeira delas é aquela “Bom conselho”, composta pelo Chico Buarque, no ano de 1972, em plena ditadura militar brasileira, e gravada pela primeira vez na voz da Maria Bethânia – grave, doce e profunda. Essa música integra o disco Quando o carnaval chegar, álbum que serviu como trilha sonora para o musical com o mesmo nome, dirigido por Cacá Diegues, o primeiro filme no qual o cineasta trabalhou depois que voltou ao Brasil do autoexílio na Europa. A letra de “Bom conselho” nos transporta para o universo dos ditados populares para, logo em seguida, desestabilizar esse mesmo universo:

Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança

Ouça, meu amigo,
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar

Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
Eu semeio vento
Na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade

(link para a canção: https://www.youtube.com/watch?v=1ExQcSlS4mA )

Ao reelaborar ditados populares brasileiros, todos os conselhos da canção apresentam uma particularidade em comum: a proposição da passagem de ações que remetem à passividade para ações que denotam mobilidade. A imobilidade do sono não aplacará a dor e a angústia; a imobilidade da espera nada alcançará. Cada um dos conselhos é apressado em sua convocação, o que se evidencia nos versos “aja duas vezes antes de pensar”, “corro atrás do tempo” e no perturbador “devagar é que não se vai longe”, que parece ecoar no decorrer de toda a letra.
É na rua e sob a tempestade que a canção se encerra, como o prenúncio de uma outra forma de dispor o corpo sobre o mundo. A imagem proposta por essa passagem nos impele a imediatamente imaginar o corpo exposto à água, encharcado, o rosto voltado para o céu, a boca aberta, a chuva incorporada ao corpo e os pés fincados no chão. A angustiada inquietude que, diante do terror, convida o interlocutor – o país – à mobilidade não pode ser confundida com o otimismo e com a plena confiança nesses mesmos conselhos, mas deve ser encarada como uma operação dialógica que sintetiza um determinado sentimento do mundo.

No filme, a música é cantada pela personagem interpretada por Maria Bethânia (Rosa) para a personagem de Nara Leão (Mimi) como se fosse um conselho de amor, forma brilhante de introduzir ao roteiro a canção do musical que talvez apresente a letra mais crítica à ditadura. É um filme também sobre a recusa, uma vez que, diante de todos os percalços que os impedem de participar da festa, o grupo decide, por fim, que não irá por um simples e grandioso motivo: eles não vão porque eles não querem. E, a partir disso, conduzem a folia conforme desejam: na rua e entre a multidão. O filme, marcado por uma série de desencontros amorosos e pela incansável preparação para uma festa que, latente, está sempre prestes a acontecer, termina com o júbilo carnavalesco repercutindo pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro.

(link para o filme: https://www.youtube.com/watch?v=j2s0eYb4Av8 )


2.

A segunda música sobre a qual venho pensando é o samba “Conselho”, de Adilson Bispo e Zé Roberto:

Deixe de lado esse baixo astral
Erga a cabeça, enfrente o mal,
que agindo assim será vital
para o seu coração.
É que em cada experiência
se aprende uma lição
Eu já sofri por amar assim,
Me dediquei mas foi tudo em vão.

Pra que se lamentar
Se em sua vida pode encontrar
Quem te ame com toda força e ardor?
E assim sucumbirá a dor.

Tem que lutar, não se abater
E só se entregar a quem te merecer.
Não estou dando nem vendendo,
Como o ditado diz.
O meu conselho é pra te ver feliz.

(Link para o samba: https://www.youtube.com/watch?v=f-0w7slK_Gs)

Este conhecido e consagrado samba foi gravado pela primeira vez por Almir Guineto, em 1986, ano da retomada da democracia e fim da ditadura militar no Brasil – dado temporal que atribui a esse samba um teor de recomeço ainda mais determinante. Seu enredo, composto por uma série de recomendações direcionadas a um amigo, apela para uma espécie de filosofia do samba pautada no acúmulo de experiências e aprendizados como forma de amenizar a dor e de dar potência à alegria.

Na composição do Chico, o intuito de elaborar seus conselhos reformulando ditados populares é o pressuposto básico, já que toda ela é conduzida por esse gesto profanador. No caso do samba de Adilson Bispo e Zé Roberto, essa peculiaridade aparece ao final, nos versos “não estou dando nem vendendo,/ como o ditado diz./ O meu conselho é pra te ver feliz”, que respondem àquele ditado horroroso que diz: “se conselho fosse bom a gente não dava, vendia”. Nesses versos, o conselho é distanciado das trocas monetarizadas, procedimento realizado também por Chico, que oferece “de graça” sua sequência de conselhos, como já aparece anunciado nos primeiros versos da canção. Ambas as passagens elaboram não só uma resposta à lógica capitalista e mercantilizada das relações humanas, mas funcionam também como uma reivindicação do desejo enquanto força de ação.

O primeiro verso da canção de Chico (“ouça um bom conselho”) e o último verso do samba de Adilson Bispo e Zé Roberto (“o meu conselho é pra eu te ver feliz”) reiteram o caráter convocatório e sensorial do conselho a partir dos verbos “ouvir” e “ver”, que pressupõem uma abertura radical para a alteridade. Postas em paralelo e considerando as particularidades de cada uma delas, ambas as letras se engendram a partir de uma retórica da conversa conflituosa, que é o que devemos reivindicar (e será esse o conselho que, juntas, elas nos dão?).


3.

O interessante é que o samba “Conselho” é certamente daqueles que tocam em todas as rodas de samba, desses que todos os que frequentamos sabemos cantar, desses que interrompem conversas porque precisam ser cantados – desafinadamente, apressadamente, com palavras trocadas, não importa. E então, no momento em que ele toca, todos escutam o conselho ao mesmo tempo que todos cantam esse conselho, e isso – essa forma de recepção – fratura e desestabiliza a lógica que delimita o conselheiro e o aconselhado. Em Quando o carnaval chegar, do Cacá Diegues, acontece algo parecido já nas últimas cenas, quando se quebra a quarta parede e somos reposicionados enquanto espectadores, reintroduzidos de uma outra forma à obra, o que constrói outro modo de participação e de intimidade.

Pouco antes do final do filme, quando a Mimi tem a sua casa destruída pelo vilão da história, que incorpora em si a autoridade perversa, nojenta e inescrupulosa da ditadura, Rosa diz à amiga que “ [...] não tem nada não, Mimi. A gente tem uma coisa por dentro que eles não conseguem destruir”. Acho que isso é verdade. Às vezes essa coisa por dentro é um amor; uma lembrança; uma lacuna; é comum que seja um desejo, e não menos comum que seja ódio; e pode ser também um conselho cuja existência só se realiza porque, em nossa incompletude, nos vemos e nos ouvimos.

Haverá espaço para nossa festa.



“toda literatura é, ao mesmo tempo, júbilo e terror”
Silvina Rodrigues Lopes, Literatura, defesa do atrito, 2012, p.78.

por Danielle Magalhães

Querida Aline,

Como eu havia te dito em nossa conversa, giro em torno dessa frase da Silvina há um tempo. Em minha pesquisa, ela primeiro compareceu em um ensaio meu chamado Na escuridão dos tempos: amor, política e poesia, publicado nos Anais da Abralic de 2017. Desde então, minha tese de doutorado é norteada por essa frase. Intitulada Ir ao que queima: no verso, o amor, no verso, o horror, a tese busca pensar uma teoria do verso como um duplo gesto de amor e de horror e como isso pode ser visto em alguma poesia brasileira contemporânea escrita por mulheres.

Vou te enviar algumas cartas para tentar esboçar isso.

1.
para Cristiana

acordei na madrugada, amor, e havia tiros que circulavam atrás da nossa janela sombreando a
mandala da colcha que resolvemos usar como cortina.
faz barulho lá fora e em breve você acorda no sentido santa cruz e eu permaneço aqui, atenta e ouvinte da fisiologia dos gatos
compreendendo a lógica feroz dos
nossos vizinhos e celebrando minhas pequenas vitórias de testemunha
viva do que todos os dias permanece
sendo a vida incompreensível.
já já amanhece, amor, e eu vou
vendo no tempo meu espelho
descobrindo um outro cabelo branco
ou um desgaste obstinado da pintura
perto da parede que há um ano era lisa. 
os tiros não param.
não vou mais fazer aquela pergunta
sobre o tempo porque a adriana calcanhotto disse que não interessava
a visão política dos poetas então
eu fico aqui insone neste bairro da zona norte ouvindo rajadas das muitas vidas separadas do
morro da outra rua eu penso nas crianças lá em cima no
morro dos macacos eu penso que
a minha profissão é uma utopia 
eu penso que gostaria de dividir com você um mundo justo (eu prometi a mim mesma que escreveria este poema sem a palavra mundo ou tempo mas eu falhei, me desculpem os poetas
que são expertises em tudo em que sou fraca, desculpem os críticos, as adrianas, amigos ou
irmãos feéricos da poesia)
em que todo fim de mês não precisassem existir brigas em função das contas ou que sempre
conseguíssemos decorar o que dizer ou fazer para o casal que nos pede dinheiro na entrada do
supermercado
(o bebê está sempre com remelas)
enfim, amor, como poderíamos bem respirar
diante de tanta disparidade, como conseguimos comer peixe sabendo que há [os tiros e
as crianças e o casal
como eu posso dormir se a minha beleza fraqueja diante dessa inaptidão dos [poetas?

uma vez eu te disse, amor, tuas mãos são saúde e as
minhas têm uma espécie de maldição
que é dedilhar o caos, saber o relevo e o tamanho da crosta das cascas que é olhar a mandala e
só ver os tiros, amor, você e essa palavra que preciso repetir para não adoecer, amor, os tiros, as
crianças, teu sono cansado, as fissuras, a tarde imensa da minha solidão, o som dos tiros
invadindo a nossa cama, o passado a meu lado, minha memória
nem amanhece e o que há é a guarita do teu sono pesando firme o desejo de outra madrugada
com menos tiros tão próximos de nós,
amor, outro tempo, outro mundo,
outra forma de traduzir a falência
que brilha na remela da criança,
vou repetir o vocativo que me
sugeriram retirar da poesia, amor
outro tempo, outro mundo
para nós.[i]

A carta acima, o poema acima, de Tatiana Pequeno, é, até agora, inédito em livro. Ele foi publicado na Revista Gueto dias depois do primeiro lançamento do livro Onde estão as bombas, pela editora Macondo, em julho de 2019.

No começo, a destinação, a dedicação, a dedicatória. O título se confunde com o destinatário e o endereçamento a ele. O título é a destinatária. No começo, o amor: “acordei na madrugada, amor”. Mas, também no começo, no mesmo e primeiro verso, o horror: “acordei na madrugada, amor, e havia tiros que circulavam atrás da nossa janela”. Desde o título esse poema poderia ser uma carta de amor. Há uma enunciação sempre amorosa: “já já amanhece, amor”. Esse vocativo, “amor”, comparece ao longo do poema: “enfim, amor”; “uma vez eu te disse, amor”. Escrever para a pessoa amada enquanto a pessoa dorme. Escrever para a pessoa amada o que se passa enquanto a pessoa amada dorme ao lado de quem escreve. Mas essa carta de amor extrapola a intimidade, ela não se reduz à intimidade. Nela, há prenúncio de morte e celebração. Mas o que se celebra não é exatamente a vida em si em oposição à morte, é o fato de ser “testemunha/ viva do que todos os dias permanece/ sendo a vida incompreensível”. Esse poema-carta-de-amor é, desde então, testemunho, testemunho do que permanece na incompreensibilidade da vida. O que se passa, entre tiros, enquanto a pessoa amada dorme ao lado de quem escreve, insone?

O ato da escrita acontece entre tiros, o tempo da escrita acontece entre tiros, o poema-carta-de-amor é escrito entre tiros. Entre tiros, a “fisiologia dos gatos” desliza para “a lógica feroz dos vizinhos”, o “cabelo branco” que indica a passagem do tempo ou desgaste da pintura da parede do quarto (“descobrindo um outro cabelo branco/ ou um desgaste obstinado da pintura/ perto da parede que há um ano era lisa”) deslizam para o tempo-agora em que a cantora famosa separa poesia e política.[ii] O que se dá entre esses dois tempos são os tiros: “os tiros não param” é o verso que separa um tempo do outro, uma cena da outra. Entre tiros, um poema, uma carta de amor, uma carta aos críticos, uma autocrítica ou um eu que se pensa (irônica e não ironicamente), uma carta aos poetas, uma carta ao ofício, uma carta ao nosso tempo, um desejo de um tempo outro, um testemunho. A crítica a uma certa crítica desliza para o lugar em que se está, o pensamento sobre o lugar de ofício desliza para a constatação do lugar fronteiriço em que se está geograficamente em relação aos tiros, embaixo, em um quarto em um bairro da zona norte do Rio de Janeiro, distante e perto do morro “lá em cima”. Como testemunho, o poema também se escreve na falha, na rasura, terminando com as palavras mundo e tempo, quebrando a promessa inicial: “(eu prometi a mim mesma que escreveria este poema sem a palavra mundo ou tempo mas eu falhei, me desculpem os poetas/ que são expertises em tudo em que sou fraca, desculpem os críticos, as adrianas, amigos ou/ irmãos feéricos da poesia)”. Mostrando que quem escreve é a falha, no fim inscrevem-se tempo e mundo na rasura da promessa de não escrever tempo e mundo: “amor, outro tempo, outro mundo,/ outra forma de traduzir a falência/ que brilha na remela da criança,/ vou repetir o vocativo que me/ sugeriram retirar da poesia, amor/ outro tempo, outro mundo/ para nós”. Ao inscrever tempo e mundo na rasura, na quebra, na falha da promessa, o que se inscreve não é senão outra palavra, que também é outra crítica à crítica: ao inscrever tempo e mundo, inscreve-se amor, rasurando a crítica, escrevendo em cima dessa, riscando-a, borrando-a, inscrevendo-se, novamente, ao traçar as palavras “tempo”, “mundo” e “amor”, um pensamento sobre a poesia.

Cruzam-se, no poema, uma carta de amor, um pensamento sobre a profissão, sobre o ofício de poeta, sobre a poesia, sobre a crítica, sobre o mundo, sobre o tempo, de modo que a vida íntima de casal leva a pensar no casal que pede dinheiro na entrada do supermercado, a briga pelas contas na vida pessoal desliza para a pobreza intransponível, as contas a serem pagas deslizam para a miséria. As perguntas deslizam para uma resposta que não se decora. Aliás, as perguntas feitas são dirigidas ao “amor”, que comparece em seu adormecimento, e que não dá respostas. O poema também é uma carta não só de amor, mas ao amor. As perguntas feitas são dirigidas ao amor. O que se passa, entre tiros, falando ao amor, enquanto ele adormece, é a vigília que cruza o pessoal e o coletivo, o lugar em que se está em casa e no mundo. O poema é um desejo de partilha, de dividir, de colocar junto, de colocar em relação, justaposto, o que está separado, como o débito da poesia e as contas do casal, como a falha da poeta e as fissuras entre os tempos e os mundos, como as brigas de casal por causa das contas e o casal na rua que pede dinheiro na entrada do supermercado, como o quarto e as crianças lá em cima no morro, como a mandala e os tiros, como o sentido por onde se encaminha certa crítica e o “sentido santa cruz" (para onde vai o amor quando acorda (“em breve você acorda no sentido santa cruz”)), como a beleza das expertises da poesia e a remela do bebê, como o amor e os tiros, essas disparidades (“enfim, amor, como poderíamos bem respirar/ diante de tanta disparidade”).

2.

amarra pendura deixa pingar
que a terra seca apaga a última gota –
a galinha me olha de um olho só
ciclope de ladinho frango assado papai e mamãe
e o açougueiro gargalha
se sacode todo mole
tem larva na carne fresca e
não tem graça nesse lugar.

(MITRANO, 2016, p.60)

O Não, de Bruna Mitrano, como um poema diz, sustenta o insuportável, “sustenta os olhos de pavor diante do inevitável de ser bicho” (MITRANO, 2016, p.57). Nele há muitas galinhas, muitos abates, muitos despachos, muitos sacrifícios, e ser bicho é a condição que mais se aproxima desses e dessas que nunca chegaram a ser, que são reduzidos a um pedaço de carne. Aqui o horror se plasma na cena do abate: o remetimento às clássicas posições sexuais pela imagem de um bicho remetem para além do abate do bicho. A gargalhada do açougueiro se contrapõe com o último verso, “não tem graça nesse lugar”, denunciando que onde há riso, há, na verdade, muito horror, menos por se tratar de uma galinha e mais por se tratar da gargalhada do açougueiro. As gargalhadas nesse livro são, no mínimo, sinistras, pelo que há em torno delas: “quem cai na gira não levanta/ diz aos gargalhos” (MITRANO, 2016, p.56); “gargalhou outra vez sem motivo./ tivesse língua, lamberia o bico da 38 spl carregada” (MITRANO, 2016, p.65). A gargalhada não deixa de soar como uma gargalhada diabólica, no sentido sempre ambíguo do demoníaco. O terrível nesse poema também vem do fato de que, nesse livro, ler sobre bicho é ler sobre gente. Nesse poema lemos “tem larva na carne fresca”. Nos perguntamos: na carne da galinha? Uma das atualizações do horror nesse livro é a proximidade entre humano e animal pelo que há de mais abjeto. Sustentar olhos de pavor diante do inevitável de ser bicho é fazer fitar a cabeça da Medusa a cada poema. É isso que o Não faz, ele faz parar, como quem dá de cara com o insuportável. Mas ele também gira e faz girar.

“deito, abro as pernas em pássaro e curvo a cervical pra, daqui, te ver. no centro, os lábios úmidos do animal todo boca devoram a sua imagem diminuída pela máxima distância suportada – sobre o corpo inerte, não obstante o grito esmurrar a película que encobre o peito, no golpe extático da pequena morte, dançam o líquido branco espesso e meus muitos coágulos – emaranham-se, escorrem. as mãos, não soltamos.” (MITRANO, 2016, p.44)

Um pouco mais da metade para o final do livro – começando a partir da página 39[iii] e se intensificando ao longo das quase trinta páginas seguintes – comparecem cenas de relação amorosa e, depois, de modo mais explícito, o amor. O poema da página 49 evidencia isso quando, no verso “lágrimas, coriza, bichos,/ tanto amor,/ amornaram seus dedos”, a definição de amor se identifica com as secreções, com o que está mais ao rés do corpo, com o que nos cola à nossa condição animal:

você não sabe se enxugar,
eu disse rindo.
das suas pernas encharcadas brotavam poças escuras
que no corredor escuro
pareciam buracos –
eu não desviava,
espalhava seus abismos.
até que ficava insuportável te ver escorrer
e eu me agachava e lambia dos seus extremos até o pé,
a língua desmoronando em cada dobra,
enquanto você ardia por toda a dor do mundo.

e foi por ela,
foi por toda a dor do mundo,
que chorei em seus pés
e supus as linhas do seu rosto quando minhas águas,
lágrimas, coriza, bichos,
tanto amor,
amornaram seus dedos.

(MITRANO, 2016, p.49)

Aí, pela primeira vez, nesse Não, essa animalidade aparece de modo afirmativo ao ser aproximada ao amor. Por uma associação não esperada, nomeia-se, por um nome também não esperado, “amor”, que já indica o para além da necessidade, isso que até então não estava saindo da necessidade, do corpo vivente: “o que nos prendia um ao outro não era apenas necessidade, mas algo que trazíamos debaixo da pele” (MITRANO, 2016, p.41). Aqui, pela primeira vez, parece, minimante, nomeia-se de outro modo, queima-se de outro modo, arde-se de outro modo: o amor não só aparece, como ecoa: nos últimos versos, “tanto amor, amornaram seus dedos”, o “amor” é duplicado na quentura de “amor-naram”.

A dimensão animal que coloca incessantemente na condição de outro, impuro, informe, estranho, hostil, longe de aludir a uma identidade, se abre a uma alteridade que implica um gesto em que o amor não vem pelo reconhecimento do rosto, mas pelas substâncias do corpo que são tocadas pela mão do outro: a suposição dos traços do rosto alheio vem pelo acolhimento das mãos alheias à matéria expelida. Ou seja, quem reconhece o outro é, antes, esse corpo estranho expelido (“e supus as linhas do seu rosto quando minhas águas,/ lágrimas, coriza, bichos,/ tanto amor,/ amornaram seus dedos.”).

No Não, o amor aparece como gesto que não desvia dos buracos do outro, mas os espalha até o limite: é assim, lambendo os limites do outro, que se ama. Ama-se também como um gesto-limite: a língua não lambe senão dos “extremos até o pé”, os buracos espalhados, as dobras, as ranhuras. A língua que lambe os extremos e desmorona em cada dobra arde afirmativamente como amor por uma segunda e última vez no poema da página 63:

um equívoco,
sangro.
o visco vermelho é larva na carcaça apodrecente do homem,
diz vontade,
entre minhas pernas –
sol no corpo flácido de sono.
estica o pescoço e a boca cansadafaminta,
bicho, lambe –
da língua à pele,
estala uma baba espessa.
entreabertos, os lábios imensos:
a gota incólume,
na dobra esgarçada
parece amor.

(MITRANO, 2016, p.63)

A gota da carne abatida do primeiro poema (“amarra pendura deixa pingar”) não foi, nesse livro, a “última gota” (MITRANO, 2016, p.60). O poema citado acima se chama “habitat”. Nele, lemos que essa morada começa pelo sangue como um equívoco. Depois vamos vendo que essa morada é uma travessia pelo corpo. Mais que uma travessia, uma travessia erótica. Mas comecemos pelo começo: o equívoco. “[U]m equívoco,/ sangro”. O “visco vermelho” no verso seguinte parece ser esse sangue que, como equívoco, deixa de ser sangue e passa a ser visco vermelho que deixa de ser visco vermelho e se transforma em verme, em “larva”. No outro poema líamos a larva na carne fresca. Agora, a larva está na “carcaça apodrecente do homem”. O dorso também é um equívoco: aqui, ele é carcaça. Mas agora a larva não está na carne fresca, está na carcaça podre. O restante do poema pode levar a crer que se trata de uma cena erótica: “bicho, lambe –/ da língua à pele,/ estala uma baba espessa./ entreabertos, os lábios imensos:/ a gota incólume,/ na dobra esgarçada/ parece amor”. Nada leva a crer que o abjeto agora não é bem-vindo. Pelo contrário, “a carcaça apodrecente do homem” faz parte da cena erótica, o amor não acontece sem ela: “diz vontade, entre minhas pernas”. Faz parte da cena erótica o “corpo flácido de sono”, faz parte da cena erótica “a boca cansadafaminta”. Nada disso indica que não há amor. Pelo contrário, tudo isso conduz ao amor, que só surge como amor no último verso, como especulação, como hesitação: “parece amor”. Habitat é o abjeto transformado em meio de amor. Não é a casa limpa, arrumada, perfumada: é a morada mais estranha: o abjeto como meio de vida, como forma de amor.

No poema anterior, o amor surgiu pelo contato, pelo toque, com substâncias do corpo (“e supus as linhas do seu rosto quando minhas águas,/ lágrimas, coriza, bichos,/ tanto amor”), o amor surgiu também pela boca, pela “língua desmoronando em cada dobra” (MITRANO, 2016, p.49). Nesse poema, parece que lemos um esgarçamento da dobra, um desdobramento do esgarçamento da dobra, um esgarçamento do desmoronamento na dobra: “entreabertos, os lábios imensos:/ a gota incólume/ na dobra esgarçada/ parece amor” (MITRANO, 2016, p.63). Nele, o amor também surge na gota que desmorona nos lábios imensos, também surge pelo contato com substâncias quentes e fluidas do corpo. Se, antes, o amor foi tateado na língua desmoronada na dobra, agora, o desmoronado na dobra esgarçada (“a gota incólume”) indica o amor, não chegando diretamente pelo “ser”, mas se aproximando indiretamente pelo “parecer”, girando em torno, especulando, como quem tateia, como quem indica, como quem acena, como quem associa, como quem aprende a dar nomes.

É importante dizer que o caráter afirmativo da animalidade vem também pelo rito, ou seja, por isso em que corpo e mensagem se relacionam em intimidade. Alguns poemas do livro sugerem rituais de matriz africana, como o candomblé, em que o corte, o sangue, o sacrifício, estão presentes, mas que, como sabemos, carregam um significado festivo e celebrador. Trazendo um dos ritos mais discriminados como obscuro, selvagem, diabólico, histérico, em que, não à toa, um corpo dá lugar a outro, uma voz dá lugar a outra voz, tornando esse corpo mesmo um mensageiro, intermediário, um medium, ou, como se diz na Umbanda, um “cavalo”, aquele sobre o qual se monta, “quem cai na gira não levanta” porque essa é uma incorporação que não se identifica com possessão, mas, antes, com uma despossessão de si que leva rente aos que estão ao rés do chão. Poderíamos definir essa escrita também como “a tragédia pronta pra despacho”: como um padê pra Exú – esse daimon que faz ponte entre os homens e os deuses, que habita a escuridão, o limite, a margem, a beira, a encruzilhada –, a carne é exposta como a de uma galinha cortada, cujas vísceras só são morte e sacrifício na medida em que são uma oferenda, um apelo. A afirmatividade das estranhezas desse corpo pagão vem igualmente aí, no rito, onde se dança sobre a brasa, onde “a carne lateja alegre diabólica”:

as pontas dos dedos estalam na superfície sólida da água e
a carne lateja alegre diabólica enquanto a fatia gorda dança
severamente aos aplausos do cego que com olhos de não ver
tateia os gemidos riscados no chão

quem cai na gira não levanta
diz aos gargalhos
a santa de vidro quebrou cedo
olho daqui os pedaços de quem não olha
tem um sorrisinho antagônico
hipocrisia mordaz nas palavras rasas
comiseração e deboche
olho de boi morto.

(MITRANO, 2016, p.56)

Entre a plataforma de versos mais alongados e o abismo dos versos mais encurtados, entre dois pedaços, entre uma “fatia gorda” e “pedaços de quem não olha”, entre a subtração do humano pela carne e a subtração de carne do humano, entre a subtração do humano pelo excesso e a subtração do humano pela falta, entre duas metonímias opostas, entre o que sobra e o que falta, esse corpo começa a dar um giro e mostra que já sabe cair, já sabe queimar, já sabe brincar com o fogo. Esse corpo deixa de se curvar inevitavelmente apenas à dança macabra da morte e traz à cena a vida-a-mais que se instaura em uma pequena morte: “no golpe extático da pequena morte, dançam o líquido branco espesso e meus muitos coágulos” (MITRANO, 2016, p.44). Entrelaçando Eros e Tânatos, o corpo-bicho, agora celebrado eroticamente, diabolicamente, institui ao corpo matável a condição irremediável de ser tão somente amável.



aline rocha nasceu em 1990 na cidade de São Paulo. é crítica literária, doutoranda em Literatura Comparada pela UFF e graduada em Letras pela USP. realiza pesquisa sobre literatura e cultura latino-americanas, além de lecionar, escrever e traduzir. em 2013, publicou o livro de poemas Gravando (Editora Patuá). atualmente, mora no Rio de Janeiro.


danielle magalhães nasceu em 1990 e vive no Rio de Janeiro. é formada em História (UFF) e tem mestrado e doutorado em Teoria Literária (UFRJ). atua como poeta e crítica, publicando poemas e ensaios em diversos periódicos e revistas eletrônicas. lançou o livro de poemas "Quando o céu cair", pela Editora 7Letras, em 2018.



[ii] Adriana Calcanhoto organizou É agora como nunca: antologia incompleta da poesia contemporânea brasileira, publicada pela Companhia das Letras em 2017. Em entrevista ao Suplemento Pernambuco, sobre a antologia, ela disse: “não me interessa visão política dos poetas”. A entrevista está disponível aqui: https://suplementopernambuco.com.br/entrevistas/1802-n%C3%A3o-estou-interessada-na posi%C3%A7%C3%A3o-pol%C3%ADtica-dos-poetas.html Acesso em 18/10/2019.

[iii]  “tem espinhos na língua./ o encontro é quando lambe o racho da minha sola./ até que o primeiro lapso nos levante às pressas -/ ensacamos entulhos com sutilezas de rancor./ nada que despossuímos sobrevive ao que gestamos./ é nesse escuro lúcido que soldamos as carnes?/ sim, estaremos sempre sozinhos -/ guardo nossos segredos com muitas mãos,/ seu sangue seco nas minhas coxas.” (MITRANO, 2016, p.39).