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três poemas

por danna dantas


um anoitecer quebrado

pra uma pessoa partida ao meio.
um céu alaranjado
pra interromper um azul que todos achavam ser eterno
alguém atravessado por um nó
que a impede de dormir
mas que ela insiste em não desatar.
alguém carregando nos ombros um prédio de 15 andares
feito de velhas angústias
assim como carrega no sangue a voz de seus ancestrais.
rodeada por amores que correm, enquanto ainda está aprendendo a andar.
ela recebeu de troco algumas moedas que anos atrás foram suas
mas não tem como reconhecê-las porque moedas são todas iguais.
e o samba mais triste de todos foi escrito na hora do seu nascimento
mas ele parece bonito demais pra ser sobre ela.
e apesar de já ter chorado a própria morte algumas vezes
até ontem ela era imortal.
hoje ainda não se sabe.
choveu sem parar durante 6 horas
e a madrugada que seguiu dizia fria e insone
que no fim as cicatrizes são todas iguais também
e tudo bem ter medo
porque toda vez que o azul muda pra lilás e o lilás pra laranja e o laranja volta a ser azul
quer dizer que você vive.
e é justamente por parecer bonito demais
que ninguém pode duvidar que é sobre você.


entre 18h35 e 18h55 no bairro alvorada

saí de casa poucos minutos depois daquela hora do dia em que oficialmente não se pode
mais dizer boa tarde porque já escureceu
decidi ir andando até o hospital pra economizar o dinheiro do ônibus
o meu bairro tem ladeiras demais e poucos minutos depois eu já estava cansada
tenho motivos pra não gostar de hospitais e estar indo de encontro a um deles me dói.
dói em um lugar que não sei o nome
mas se eu tivesse uma caneta e soubesse desenhar, poderia fazer um animal noturno,
com unhas pintadas de roxo, argolas nas orelhas, 3.75 graus de miopia
e um x marcado em um espacinho escondido entre as costelas
bem ali, consegue ver?
senti uma pontada exatamente nesse lugar, a mesma dor rápida de quando a gente fura
as orelhas pra usar argolas, e foi a primeira vez que pensei que um dia eu posso me
tornar a filha de um homem morto.
me antecipei pra atravessar a rua, corri entre os carros e uma buzina gritou comigo
não tive medo mas tive muita raiva de tudo.
da antecipação
da inconstância
de ouvir um grito de alguém que não me conhece
de estar indo pra uma sala de espera de hospital
porra, tinha uma faixa de pedestres logo ali, consegue ver?
por pura antecipação continuei pensando em quem a gente se torna
e um bêbado na calçada sussurrou que a gente só se torna a gente.
vi um muro todo pintado de cinza e tive vontade de escrever alguma coisa nele
“se eu pudesse te fazer feliz, eu faria”
mas eu não posso
a gente pode pouca coisa, espero que você consiga ver.
lagrimei sem querer quando vi o rosto do hospital me esperando com suas luzes muito
brancas e tive que dizer boa noite porque já estava escuro
o meu bairro tem doentes demais
então sentei na única cadeira vazia da recepção
comecei a descascar o esmalte roxo das unhas pra esperar o homem vivo de quem eu
sou filha
e não tive raiva de nada
mas tive medo de tudo que a gente não consegue ver .


todo o meu fôlego de vida cabe dentro de um isqueiro

que eu esqueci em algum dos meus bolsos e no momento certo volto a encontrar.
me sinto culpada quando perco tempo com coisas que sei que são inúteis, enquanto
devia estar fazendo outras coisas que talvez sejam inúteis também
então eu sou.
sou o que acho que devo
sou todo o calor que a vida me traz
e ainda me deslumbro tanto com as luzes da cidade
e não me assusto mais com as cinzas e os cacos de vidro no chão
nem com esse aperto no peito
de um sentimento vão
de um sentimento breu
inútil e adorável, como um recém-nascido de sapatos.
inútil e cruel, como mais uma tentativa entre duas pessoas que não se amam mais.
tudo continua no lugar quando as luzes acendem.
antes eu não tinha medo da morte porque achava que ela nos tornaria anjos
e todos os anjos moram na lua
agora não sei mais o que ela nos torna.
como se a minha história fosse um rascunho de sonho
que pareceu muito lúcido nos primeiros três segundos depois de abrir os olhos
que eu anotei em um papel amassado com uma letra infantil ilegível
que ninguém sabe o quanto foi bonito
porque quando quis contar, ninguém parou pra ouvir.
todo o meu fôlego de vida cabe dentro de um isqueiro
e é só do que eu preciso pra causar o maior incêndio que você já viu.


danna dantas é amazonense do interior, mas hoje, aos 25, vive na capital Manaus. estudante de Letras na Universidade Federal do Amazonas, é coautora do projeto Urban Cookie e grande apaixonada por todas as histórias incrivelmente comuns que as crianças, as encruzilhadas, os bares, os rios e todas as suas solidões nunca cansam de contar. é sobre isso que escreve.