SEÇÕES

dois poemas

por vitor felix


Manifesto: falo pelo direito à indiferença

Ao poeta Pedro Lemebel

Não quero bordar mais nenhum pássaro
Na bandeira da pátria livre: ela não chegou a existir.
Os pássaros que hoje tentam voar e são abatidos,
Mas, tudo bem, a bandeira da pátria brasileira
Jamais será vermelha, eles dizem;
Vermelho será o solo deste lugar provinciano
Com manias de Narciso,
Olhando a própria imagem
E nela se afogando –
Morrendo engasgado com a gentil ignorância
Típica do nosso país.
À atual juventude – a geração espelho – digo:
Olhem para si e digam o que veem.
É fácil sentir nas suas palavras odiosas
O mesmo odor putrefato das cidades sujas,
De homens sujos e de moralismos vazios.
Sinto os olhares sobre este corpo,
Ainda são de curiosidade, de cobiça
Pelos menininhos que querem ter na cama
E depois na ponta da faca, com o sangue de cada
Bixa, travesti e sapatão que vocês matam;
De cada ser humano sem vida que
alimenta a vossa covardia.

Não me olhem assim, como se me condenassem.
Esse olhar não me intimida mais!
O círculo da vizinhança é nosso primeiro cárcere,
Onde aprendemos os primeiros esconderijos,
E a inventar uma existência possível de imediato.
É como um crime,
Ou melhor, como o primeiro pecado cristão:
Você nasce pagando o preço,
A culpa descobre depois.
E percebe ainda os mesmos olhares da vizinhança
Espalhados por suas costas, chegando de todos os lugares –
O corpo que habito passa a criar espasmos,
Inflando o volume nas calças dos pedófilos ou
Chocando as mães de mãos atadas às de seus filhos normais.
Ninguém suporta a nossa liberdade.

A operação Tarântula nunca se encerrou, afinal
O Brasil continua a matar brutalmente as travestis
Que nas noites tortuosas servem parcimoniosamente
Aos cidadãos-de-bem, pais de família
Com quem cruzamos todos os dias.
Essa é a mesma frequência das fatais notícias:
t     o     d     o     s     o     s     d     i     a     s
Elas são abatidas em prol da democracia,
Para nunca permitirmos que ultrapassem os 36 anos,
Essa idade da crucificação.
Há corpos estranhos semeando todo o território nacional
Deitando por terra corpo, sangue,
E destroça-se o coração,
Torna-se irreconhecível o rosto que antes era só beleza,
Com tanto ódio quanto possível
Até reduzi-los a pedaços microscópicos
Impossíveis até de recolhê-los para ser enterrado.

São as nossas histórias que contaremos.
Nós, esse conjunto tão indesejável para o país
Onde seguidores do Criador engendram a
Política Apocalíptica de Crimes Hediondos LTDA.
Se falo da dor, é porque cansei de senti-la sozinho
E é preciso fazer entender:
O mesmo rosto a sorrir
Também derramou choro em algum beco ou
Rua ou esquina ou barraco de uma cidade qualquer.

A nossa narrativa é indiferente a vocês;
Nosso projeto de país será outro.
Trilharemos um novo caminho,
Sempre oposto à estreita calçada política
Oferecida a nós até hoje.
Nossa via não segue o passo das vozes que nos dizem:
Vem por aqui!
Engenheiras da Sociedade Apocalíptica da Liberdade,
Será essa a nossa função.
Fica declarada, então, a fundação de um novo Estado!


Quase uma elegia

a Cirilo Moreira

queria um dia escrever um poema
a todos os versos que foram lidos
apenas por quem os teceu.
e seria um tema sobre a covardia,
sobre a falta de oportunidades e os vícios
que foram culpados por manter essas palavras
longe dos olhos do público.

pense você: quantas obras
o tempo não guardou para si?
gênios da literatura esquecidos
em épocas distantes de hoje
e que conversaram, comeram,
fumaram e até morreram junto de autores
de obras que chegaram ao nosso agora.

olhe em volta; observe no silêncio.
de quantos espaços vazios nos completamos?
Há longos pedaços de estranhos retalhos
costurados em nós,
cujas estampas começam a se apagar
na fricção do corpo com a vida,
onde nos desgastamos.

cada pessoa produz seu próprio esquecimento;
e se fabrico palavras é para garantir
algum registro mais prolongado.
ao menos enquanto durar
o papel escrito
o computador a funcionar
a mente com força lúcida
as páginas de um livro impresso.

enquanto existir uma forma de permanência
para nos manter no mundo
o ponto de cruz ainda cerze
o fio da memória
a um curso de vida.



vitor felix nasceu em 1995. é cria e morador das favelas da Maré, mestrando em Letras pela UERJ, onde estuda a obra de Roberto Bolaño. escritor, professor do ensino básico e artista performático, atualmente desenvolve sua poesia na perspectiva de pessoas LGBT+, nas dinâmicas da favela e como essas narrativas vivas se encontram e colidem na literatura