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uma carta para lucas van hombeeck

por julya tavares


Lu,

há uns anos atrás, em 2015, li pela primeira vez One Art, da Elisabeth Bishop, traduzido pelo Paulo Henriques Britto. esse foi também o ano em que conheci O poema ensina a cair, da Luiza Neto Jorge. com esses dois poemas, eu criei minha antologia da perda. como você pode ver, “queda” e “perda”, na minha cabeça, estão no mesmo campo semântico. no ano seguinte, eu conheci o Fred e, sempre que atravessávamos essa cidade de moto, sobretudo o Rebouças, eu pensava em escrever um poema que, de fato, ensinasse a cair. por isso, talvez, ele tenha me dito tantas vezes que uma hora dessas eu derrubaria a gente da moto. eu estava mesmo calculando as possibilidades de sair ilesa, como um gato, de uma queda bem naquele espaço entre os dois túneis. nessa época, eu estava às voltas com os modos de usar que enxergava nos poemas da Marília. com ela, aprendi que a poesia é sempre um jeito de reorganizar as coisas, de reaprender o mundo. essa pedagogia poética, você sabe, eu amo. quando li o teu Nuvens [na seção de congelados], assim como em 2015, eu tinha acabado de perder coisas importantes - “isn’t hard to master”. era preciso, mais uma vez, aprender a cair. ou a ser como nuvem: prestes a desabar ou a dissipar. eu queria te dizer, Lu, que o teu livro reabriu minha antologia da perda, porque ele fala sobre coisas em direção à queda desde a epígrafe; desde o título. no “supermercados princesa”, há indicações de que é preciso manter “no ouvido esquerdo/ o quilo do peito/ a 12,99” e “no direito/ uma tonada”: saber quanto custa o peso das coisas; ouvir uma canção de amor. no meu peito, Lu, teu Nuvens funcionou feito um pequeno manual sobre como lidar com a ruína das coisas: “são cinco horas da tarde/ na fila depositamos/ no futuro a alegria enquanto/ um homem retalha/ em postas/ a carne mais/ barata”. no “Cuauhtemóque ou um último poema asteca antes da privatização da CEDAE”, vejo você, do alto de seu antigo edifício no Flamengo, imaginando um cortés a chorar por dar cabo do “último tlatoani de tenochitlán”. um europeu, Lu, como é também algum pedaço de vida teu. é você o cortés a chorar frente à ruína de “cuauhtemóc”, o nome do “último tlatoani” e de seu antigo edifício no Flamengo. só assim é possível um supermercados princesa, que me remete a tua casa com a Jô hoje, em Laranjeiras. para lidar com a ruína das coisas, é preciso morder com força o presente. essa semana li no Parque das Ruínas, da Marília, que na língua de uma tribo andina a referência espacial do futuro é atrás, enquanto a do passado é à frente. o futuro é aquilo que não se pode ver. acho bonito como, nessa lógica, o passado se confunde com o presente. no teu Nuvens, você parece desenhar um futuro em que presente e passado se unem sob o registro da ruína. entre o “alto da pedra do sino”, “o colapso da lista de compras em branco” e as “apostilas de inglês da quinta série”, “você/ canta”. há algo desses signos – queda, perda, ruína, passado, presente, futuro – que se confunde no que você escreve, entende? “é tua forma de estar vivo, digo”. desde que o Felipe comentou, na sua resenha sobre o Nuvens, que não usaria o adjetivo “febril” – eu adoro essa palavra! – pra falar dos teus poemas, fiquei lembrando da vertigem que sempre sinto diante de grandes alturas. a vertigem indica que há alguma alteração no senso de equilíbrio; por isso a impressão de desmaio, queda. nessas horas, o corpo esfria, eu acho, e talvez isso diga de um outro tipo de febre. é no que penso quando leio teu “Processador de leito de fluidos ou Misturador granulador de alta velocidade ou Granulador oscilante ou Máquina de compressão com rotação única”. e em você, indiscutivelmente sagitariano como é, suando em bicas quando “derelicto/ arrebentado cheio de quinas/ bráquetes quebrando um caco/ plástico minha primeira/ bicicleta”. é assim que você me diz, Lu, sobre tuas ruínas das quais nunca falamos: “cedendo o filete da gengiva/ tártaro que calcifica os/ restos do almoço/ as cáries nossas/ escolhas”.


julya tavares é mestre em teoria literária pela Universidade Federal Fluminense, fez parte do coletivo Oficina Experimental de Poesia e está em sua terceira edição da revista Garupa; dessa vez, como editora chefe.