sereia blooming blues II
nas séries policiais draga-se um rio
com a facilidade com que se passa um café pelo coador de pano
buscam-se corpos em decomposição, pistolas submersas,
provas circunstanciais ou não
dna preservado em estado de hóstia
é fácil dragar um rio
[ parece ]
mas como dragar a memória
na busca de um estilhaço de dor
um início uma história
um grão
um dente de leite jogado em cima do telhado
a primeira vergonha
o primeiro animal de estimação
dragar um rio
eles disseram
é como coar café
numa tessitura maior
numa escala de titãs
ou melhor
é mergulhar
no escuro
sem saber
se o que brilha na lama
entre algas de um ecossistema complexo
é uma placa de titânio no quadril desmembrado de um cadáver
ou uma sereia radioativa
criada em néon
nos confins
da sua infância
acenando
com a cauda
em franca descamação
como batizar um ciclone atlântico
para priscilla menezes
você me assegura que
a tarefa de manufaturar a tempestade
deve ser como
a atmosferização do poema
como descolar uma palavra da outra
: seccionar a polpa
da casca
ou como subordinar a sua paisagem
à escansão algorítmica do vento
mas o silêncio dos astros segue
numa linguagem temporária
[ como nomear a passagem de um a outro? ]
uma tempestade do tamanho do estado de ohio
você garante: o ciclone toca o solo
como um ponto de voragem
toca o mapa geológico de alguma página escrita em tempo real acredite
você diz
[qual é mesmo o nome do ponto?]
85% dos furacões se formam a partir dos ventos africanos
você desliga a tevê e promete jamais assistir telejornais novamente
alimenta os peixes
sugere distraidamente
um cronótopo de deserto um nome
uma mulher
prateada como um arenque finlandês
montada num cavalo
em seu epicentro
-- a imagem que te vem
é de um leviatã composto de destroços e vento
que se move
de um ponto a outro
[ dar nome a um ciclone é ser
também nomeada por ele, você conclui ]
você segura com dificuldade
uma lanterna entre os dentes
fixa o olhar sobre horizontes imóveis
para desacelerar a vertigem
como sua mãe ensinou
você não tem certeza
sobre a intenção da tempestade
: um tropismo de ilha
que não sabe se é continente
ou oceano
síndrome da resignação
na suécia
um número crescente de crianças refugiadas
de diferentes minorias caem
em uma espécie de coma autoinduzido,
crianças curdas asiáticas ciganas balcânicas
hibernando
como miniaturas de ursos pardos
em covis
numa planície pedregosa qualquer do alasca
os médicos perplexos
constatam sua desistência
desistiram de tentar essas crianças
dormem profundamente
durante semanas
meses ou anos
médicos psiquiatras cientistas – estupefatos
“são como bebês [ estrangeiros ] adormecidos”
presos em um conto de fadas cruel
perdidos numa espécie de castelo em ruínas
ou bosque de espinhos
esperando as coisas melhorarem
no país em que vivo
uma mulher saiu para votar
há exatos 9 meses
saiu de casa com um documento velho
e uma apreensão indizível no bolso
a foto desbotada não reflete ainda
o original em carne e osso
em carne viva
há 9 meses a mulher saiu
para a sua zona de quarentena
e não retornou
[ não voltou mais a mesma ]
há nove meses
a mulher traz no ventre
um mal em gestação
o primeiro parágrafo
de um romance distópico
um embrião maligno
que já vimos antes: o ovo da serpente
na suécia
algumas crianças adormecem
por meses e anos
não acordam nem para comer
ou assistir televisão
lá chamam isso de síndrome de resignação
no país onde vivo
também temos algumas síndromes
-- cada um
com a sua própria versão
de resignação
algumas crianças aqui caçam pokémons
pelas ruas esquadrinhadas
por helicópteros do estado
outras seguram armas
há nove meses
cobrimos corpos
aguardamos a quarentena
e já vimos isto antes
rita isadora pessoa é uma escritora carioca. é doutora em Literatura Comparada e publicou em 2016 seu primeiro livro de poemas, A vida nos vulcões. foi vencedora do Prêmio Cepe Nacional de Literatura de 2017 na categoria Poesia, com o livro Mulher sob a influência de um Algoritmo. ficou em 2º lugar no Prêmio Off-Flip de 2018, com “Como Batizar um Ciclone Atlântico”.