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três contos

por guido arosa


Nesta noite tão cedo

“– E depois?”
“Noturno” – Samuel Rawet

Leio “Noturno”, conto de Samuel Rawet. Deitado, na cama, com sono. Não o entendo. Fico no lirismo de suas palavras, mas ao último ponto final me dou conta de que não o apreendi. Não sou capaz sequer de versar sobre seu tema. Durmo e o deixo para depois. Acordo totalmente desperto e alerta. Penso ter dormido o suficiente, mas me surpreendo porque dormira muito pouco, somente por uma hora. É ainda noite, mais noite, porém não manhã. Ainda nem são três horas da madrugada, e parece que dormi tanto. Ouço em seguida alguém tomando banho e penso ser minha mãe, que sempre às três e alguma coisa se levanta para o trabalho. O barulho do chuveiro deve ter me despertado. Acordo então com uma impressão incômoda, algo que nunca antes havia pensado e que veio quase como que em uma epifania. E que eu não deixava agora de pensar, e que me desesperava como a dor repentina da morte súbita. Por que isso agora? Algo ainda não pensado, nem mais brevemente que fosse, mesmo que passados dezoito anos:

E se meu tio, dependente das drogas e de vida claudicante (há pouco descobri que também esquizofrênico), não fora atropelado por acidente, naquela madrugada de fim de agosto, ao atravessar completamente vestido de preto e provavelmente alterado pelos entorpecentes a Avenida Lauro Sodré, em Botafogo, em frente ao Túnel Novo, e sim se suicidado, tirando sua vida ao se projetar em uma pista de alta velocidade, em plena noite, querendo ser atingido por um carro, já não tendo mais amparo nem mãe? Minha avó, que enfartara dois anos antes e morrera em poucos minutos. Minha avó, que pedira para que ninguém o internasse enquanto ela ainda vivesse. Quero entender que ela precisava morrer ali, porque o sofrimento de saber o filho morto poderia matá-la com mais dor. Tento voltar a dormir, mas penso apenas neles e tenho angústia. Estou muito ligado e dormi tão pouco. É quase a mesma sensação de quando me droguei em um bloco de carnaval e elétrico me deitei no meio de uma passarela que liga o estádio do Maracanã às estações de trem e metrô, e por pouco sem me dar conta eu poderia ter me jogado dali, mas acabei me levantando e correndo até minha casa e ainda disparado me deitei no chão do quarto com olhos assustados. De que fugia? O que encontrava?

Leio “Noturno” novamente, mais na intenção de voltar a ter sono do que entender a narrativa antes incompreendida, antes apenas palavras encadeadas sem sentido. No que lendo entendo finalmente que um pedreiro imigrante do interior, que agora trabalha e pernoita em obra de um edifício na cidade grande, recebe a notícia, por meio de correspondência lida por um companheiro de trabalho, de que morrera sua esposa. Ela, que não desejava que o marido se ausentasse, que fosse deixada sozinha por ele na terra natal. O imigrante constata, então, se manter na cidade no mesmo infortúnio de vida desgraçada de antes, sem dinheiro, futuro e ainda sem lugar e sem a mulher. Com isso, na madrugada, completamente bêbado após receber a notícia, acaba caindo em um foço profundo ao se debruçar com o corpo por querer fazer xixi, onde um dia vai dar lugar ao sobe e desce de um elevador.

Acidente ou suicídio? O texto me diz ser mais acidente ou o texto me diz ser mais suicídio? A vida me diz ser mais acidente ou a vida me diz ser mais suicídio? Fecho o livro e agora chove. Ainda não fechei os olhos, ainda não fechei a vida. Agora entendi. Acordei porque precisava entender a resposta ou ter para mim a pergunta melhor formulada. Tentando e ainda sem conseguir dormir, sem sono, com uma angústia diferente, peço para que meu tio e minha avó fiquem em paz, por favor, e ouço minha mãe saindo para trabalhar, no escuro, na chuva, agora um pouco mais tarde, mas ainda muito cedo, algo em torno de cinco e vinte da manhã, e está escuro demais.


Procuro sem querer te achar

“Um saco de cimento de cinco quilos parece de cinquenta”
Arábia – ouvi a frase no filme, porém ela não existe

Procuro novamente. Coloco seu nome no Google. Dessa vez tenho coragem de ir um pouco mais longe. Mas não o suficiente. Nunca o suficiente. Encontro o registro de um processo judicial. Ali vejo seu nome, o de sua esposa e o de uma outra mulher. Penso poder se tratar de algum caso em que ele esteja sendo julgado por abuso sexual de menores. Mas não. Deve ser apenas uma briga entre moradores de um edifício. É o que imagino, porque o texto não deixa claro os motivos do processo, mas vejo ali seu nome e vejo também o que é evidentemente o nome de sua esposa (ela imagina ter se casado com um pedófilo?). Encontro o nome do prédio no que parece ser um resumo do processo de, não lembro, 2015. Procuro no Google Maps. Ao que tudo indica é um prédio no bairro de Todos os Santos, à Rua Getúlio, número 403: Condomínio Solar Carlos Gomes. Vejo a imagem desse prédio e imagino aquele homem morando com a família em um dos apartamentos.

Continuo buscando. Coloco de novo seu nome completo no Google. Agora vejo que há alguém com esse nome trabalhando como, ao que me parece, professor do curso de tecnologia têxtil do Senai. Acho, então, um arquivo, de 2009, do Centro Universitário de Brusque, onde estão em lista relacionados os professores do curso de pós-graduação em gestão da cadeia têxtil. Nessa lista está aquele nome. O nome dele. Titulação: mestre. Disciplina a ser ministrada: fiação – fios fiados e sintéticos; processos de fabricação de não-tecidos. Vejo um endereço de referência: Rua Luiz Paulistano, 413, no bairro do Recreio dos Bandeirantes. Vejo um endereço de e-mail e dois números de telefone. Anoto. Guardo. Separo. Tento esconder, quase que até de meus próprios olhos. Procuro mais uma vez no Google Maps. É um edifício residencial, baixo, onde ele deve hoje morar junto da esposa iludida, junto da família enganada.

Nunca cheguei tão perto. Não foi difícil encontrar essas informações. Mas é quase impossível me defrontar com tudo. Muito esforço, ainda muito sacrifício. Posso telefonar ou para o Disque Cem ou para aqueles números que me mostram como sendo os dele. Mas ainda não. Se eu telefonar eu vou morrer. É muito simples. E a relação é direta. Eu vou mesmo morrer, acho que sem nem direito a purgatório. É inferno em linha direta. Esse prédio de classe média, falsamente trabalhado em pedras preciosas, diferente daquele outro mais modesto, naquela rua de subúrbio. Tudo tão falso, tudo tão irreal, são apenas imagens no meu computador de uma história tão antiga.

Busco mais um pouco. Encontro duas fotografias, duas assombrações. Uma, seu rosto, ilustrando um currículo, em proximidade quase pornográfica, imoral. Sua monstruosidade toda exposta sem intermediações. Seus olhos voltados para mim, seu sorriso cheio de veneno. Seus dentes cadavéricos. A segunda, uma imagem do que parece ser seu local de trabalho, local de trabalho atual, porque no passado ele trabalhou naquele quarto daquela casa maldita, onde ele com cinquenta e seis anos chupava meu pau de doze anos. Infelizmente, não há outro modo de dizer. A palavra é, aliás, muito aquém do abuso sofrido. Mas só elas eu possuo para tentar criar para mim um caminho possível de liberdade. Nessa fotografia, ele está sentado em uma mesa tomada de papéis, com um computador de lado, ele no meio, sorrindo, em seu cargo de professor, possivelmente na instituição de ensino que o emprega. Aqueles dentes brancos muito brancos, expostos, mas dentes que em tudo lembram a artificialidade de uma dentadura. Ele tão feliz e satisfeito naquela imagem. Ele a quem desejo destruir, e que a mim destruiu, ali tão esfuziante em sua plenitude de cidadão que contribui para o desenvolvimento do país, paga seus impostos em dia, aquele já senhor de idade que todos respeitam. Ele, ali sentado, num fundo todo branco, naquela parede preenchida por azulejos brancos. Eu a queria repleta de sangue, do sangue desse homem, que quero matar com minhas mãos. Pegar cada um de seus membros e arrancar. Sua cabeça pisar, pisar, pisar. Não quero mais olhar, não vou conseguir mais nada com isso.

Abro o Facebook e busco ali seu nome. Encontro um perfil que tem a mesma foto daquele site que apresenta seu currículo. Ali vejo que existe uma filha e existe também um neto. Ele tem um neto ainda criança, na foto que pude ver ainda um bebê. Olho o bebê e me espanto, tenho muito nojo, olho aquela criança e tenho pena. Entro no perfil daquela mulher que é filha de um abusador. Os dois, mãe e bebê, não devem mesmo fazer ideia de que vivem num seio familiar imundo. Eles nem devem pensar que aquele pai de família exemplar é na verdade um merda que abusou de uma criança de doze anos de idade. Será que ele vai querer abusar do próprio neto, como abusou de mim? Sei que ele teve, além da filha, um filho. Ele teria abusado do filho? Ele teria essa vontade? Ou me usou porque afinal eu ali para ele era um ninguém? Vamos, quero ver você fazer com seu neto o mesmo que fez comigo. Você não teria coragem, não é mesmo? Não teria coragem. Essa criança não merece nem saber o que aconteceu. Ela não merece dividir comigo esse sofrimento. Ela deve ser poupada. Você precisa morrer na culpa. Entro no perfil daquela filha de abusador de menores e vejo que ela é também amiga de um cara que estudou comigo na faculdade. Será que eu poderia pedir ajuda a ele? Mas é tudo tão irreal. Claro que isso não vai acontecer.

Não chegarei nunca mais a ver frente a frente meu abusador. Tenho tanto medo desse momento que não consigo nem sonhar com o homem que destruiu minha vida e por isso devo representar um caso atípico de traumatizado ao não projetar nos sonhos de angústia minha experiência-limite. Gostaria tanto de sonhar com ele todos os dias, quem sabe assim poderia elaborar a melhor forma de destruí-lo. Mas como eu o recalco, eu o continuo carregando nas costas, e é muito pesado, porque ele aparece comigo acordado sem pedir licença, ele aparece e não apenas derruba a porta da minha casa sem cerimônia, como põe fogo em todo meu lar. As fissuras dessa história ressoam nas situações mais diversas, nos pormenores mais inusitados. Depois de pensá-lo por um minuto, é como se do tempo dos dinossauros até o dos robôs tudo fosse extinto. Fico imaginando os alunos desse homem. Aquele aluno que senta na carteira e aprende com ele sobre um tecido. Fico imaginando quem são seus alunos e como sobreviver sendo o aluno daquele homem que eu sei que me abusou há dezesseis anos. Ele ensina sobre tecido, enquanto eu faço e desfaço como Penélope os fios desse trauma que não tem começo, não tem fim, é eterno e permeia tudo.

Esse professor um dia foi psicanalista, o meu psicanalista. Seu currículo me diz que se formou pela Sociedade Brasileira de Psicanálise Contemporânea do Rio de Janeiro, mas vejo que seu registro no que chamam de Ordem Nacional dos Psicanalistas foi suspenso ao que consta em minhas buscas no dia catorze de abril de 2016. A página dessa Ordem saiu do ar algum tempo depois de eu encontrar seu número de registro. É tudo o que tenho. Juntei todas essas informações que tenho dele. Um dia eu as levo à Justiça e o condenarão. Espero não ser tarde. Espero ainda ser possível. Quero agora pegar o telefone e ligar para o Disque Cem, mas o telefone aqui de casa está mudo, e quando funciona um pouco melhor nunca nos ouvem do outro lado da linha. Estou sem crédito no celular, mas Disque Cem deve ser de graça a ligação. Mas agora não dá. Porque afinal estou sendo covarde e escrevendo. Apenas escrevendo.

Agora chega, estou cansado, meu rosto queima, pareço com febre, sinto que meus olhos saltam, já não suporto.


São tantas as verdades


“O meu nome não”
A fúria do corpo – João Gilberto Noll

Carta para que você leia e entre no meu muro.

Escrevo para que alguém se lembre do que tento esquecer (esquecer não... ultrapassar, quem sabe), mas que agora preciso fingir que ninguém conhece e entende para conseguir continuar e sobreviver. Escrevi um livro e continuo escrevendo outros onde digo que sou um homossexual abusado na infância por meu psicanalista e que, adulto, possuo infecções sexualmente transmissíveis e acredito na minha morte certa pela aids, mas ao escrever finjo que nem tudo é tão verdade e que alguma coisa é bastante mentira, pois essa é sempre uma forma de me esquivar um pouco da vergonha: conseguir contar mas dizer que tudo não passa de uma brincadeira.

Deixar o outro em dúvida é uma maneira de fugir de um tribunal que na maioria das vezes não temos coragem de encarar, mas que somos obrigados a olhar, nem que de soslaio. Porque seria imoral de minha parte dizer “é tudo ficção”. Não posso, infelizmente. Algo em mim diz que é impossível mentir completamente, e fazê-lo seria como se historiadores negassem que judeus foram mortos pelo nazismo ou geógrafos que a terra é redonda ou biólogos que seres humanos são mamíferos. Algo em mim diz que sou eticamente responsável por transmitir uma experiência, e que preciso dizer: “isso tudo aconteceu comigo, no meu corpo”. E por isso conto. Mas ao mesmo tempo, dizer completamente que todas as linhas e todas as letras são verdadeiras é se lançar muito rápido em um desconhecido. Só conseguiria dizer de cabeça baixa, bem baixa: “sim, tudo que está aí escrito – o abuso, a doença, a sexualidade – é verdade”.

Contar é uma forma de entender, e preciso escrever para conseguir fazer um retrato de tudo: do homem que me abusou, da doença que me atacou, da vida que optei, do círculo de afetos a que me sujeitei. Só que, para que eu permita que tudo que digo chegue ao outro, preciso deixar de lembrar que aquele livro sou eu – em um processo esquizoide, invento que ele não é meu, que aquele livro não sou eu, porque só assim para se poder entregar um testemunho de sangue para as mãos do outro, para as mãos por exemplo de uma velhinha que pode morrer ao realmente entender a primeira palavra do que digo (que sou, quem sabe principalmente e o pior de tudo, um abusado).

Se disser “é tudo verdade”, terei que encarar as consequências de ir ao programa da Fátima Bernardes e lá dizer, às onze horas da manhã, que sim, eu fui abusado aos doze anos de idade por meu psicanalista de cinquenta e seis e que escrevi um livro sobre isso. Me tornarei um porta-voz, compulsoriamente um representante. Como dizer à multidão algo que é impossível dizer ao parente mais próximo, ao amigo mais querido, ao inconsciente mais raso? Mas eu escrevi um livro contando tudo, como depois não discorrer longamente sobre? Eu gostaria de ter a opção de não dizer mais nada, mas imagino que depois de um livro escrito, serei obrigado a continuar escrevendo-o sempre. Quando me leem e se aproximam de mim abrindo lentamente os lábios me perguntando algo como: “o que você escreveu é... verdade?”, respondo: “quê isso... é só literatura”. Isso me alivia, porque é como se assim não transferisse para o outro, inocente, um fardo que só eu quero carregar, só eu sei que consigo suportar, e só eu conheço as armas para combater. Não posso multiplicar o desespero. Ele fica comigo e o controlo.

Só eu posso saber o grau de veracidade do meu texto. Aqui no texto consigo escrever sim ou não, mas no mundo fora dele preciso dizer no máximo talvez, porque qualquer resposta mais assertiva me porá em um banco de tribunal, onde precisarei responder sem titubear sobre minha condição de abusado. Por enquanto, sei apenas conviver com o peso poético de cada palavra escrita por mim. Um dia, quem sabe, saberei lidar com seu peso jurídico, ao gritar: “eu o acuso!” O acuso do abuso, o acuso de ter me assassinado.

Vamos combinar assim, então: você me lê, me entende, sofre junto, mas depois que fechar o livro, se tiver chorado enxuga as lágrimas, assim como eu as minhas enxuguei, e ao me encontrar, não me pergunte nada – porque afinal escrevo há mais de uma década para encontrar uma resposta e não será numa pergunta de supetão que conseguirei dizer algo que faça sentido –, mas apenas me abrace, e diga talvez: “porra, tá foda, né?”, que direi eu acho: “porra, pra caralho, mas tô de boas”. Assim deve ser bom porque vou captar que você entendeu o que eu quis contar escrevendo por não conseguir falando. Quem sabe desse jeito dê certo. Porque já percebi que, apesar da vergonha de falar sobre meu abuso sexual e de certa forma sempre fugir do assunto na vida real, fico com raiva de ver aquele que sabe se calar diante de meu sofrimento.

Não é exatamente fácil lidar com um sofrimento extremo, acho que já deu para perceber as eternas contradições: você quer se calar gritando, vive matando aquilo que sempre sobrevive, não consegue deixar de escrever o que já deveria ter terminado...

E quando, afinal, você vai nos dar seu livro, perguntam os pais ressentidos. Como se fosse realmente possível. Meu Deus, o que pensam? Será que não percebem? Agradeçam-me por poupá-los.



guido arosa venceu o 3º Prêmio Rio de Literatura na categoria Novo autor fluminense com seu livro O complexo melancólico, publicado em 2019 pela editora Garamond. é mestre e doutorando em teoria literária pela UFRJ, onde estuda homossexualidades e literatura de testemunho. seu segundo livro, Terapia do abuso, permanece inédito.