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intimidades incendiadas

por rodolfo teixeiralves


intimidades incendiadas
            para UFRJ, em memória de seus incêndios, e para o alojamento, que me abriga.

 

Brazil eu te dei tudo e agora estou abandonada.
Você Brazil que me corta nas estruturas, deveria saber meus danos:
milhares de sentimentos, artigos, livros completos e anais,
eu tenho um currículo invejável, melhores colocações nos rankings e muitas, muitas noites mal dormidas. E incêndios, cinzas, poeira espalhada,
lágrimas, e às vezes me alegro. Você deveria saber.

Os jornais querem saber o que eu digo, quem será o próximo gênio, quando nascem as flores
se no próximo verão eu descubro a cura e invento mais uma bomba atômica. Movimento
partículas, ansiedades
e sou dona do futuro. Em mim Brazil milhares de famílias depositam esperanças, suas crianças, saudades, algumas enterram seus mortos. Você que me corta nas estruturas, deveria saber. Coleciono troféus, citações, e entre as incendiadas Brazil eu sou a primeira.
Eu sou a maior: 2x5 3x28x3 é minha razão de alojamento
minhas idas e vindas, minhas saudades, todos os estados habitam em mim,
os ratos me penetram e eu pego fogo. Essa sou eu, você não vê?
À noite, enquanto você dorme, me suicido aos poucos, lento que me corta a estrutura
a carne, o sono, e amanhã temos aulas às 7h.

Toda semana Brazil você deveria saber.

Deixe em paz meus comunistas Brazil
eles são meus revolucionários depressivos pessimistas insones
melhores notas muitos livros café sem açúcar e alguns cigarros
meus comunistas
ótimos jardineiros de saudades: você tem medo das flores?

Brazil alguém caiu do 4º andar e não foi acidente.
Brazil fazem 2 anos que peguei fogo
as cinzas ainda me escorrem, minhas paredes marcadas
muitos anos e eu continuo de pé - estou aqui, você não me vê?
Você que me corta nas estruturas deveria saber.
Quantas esperanças, quantos diplomas, e este ano que a duras penas termina.

Excelência, excelência, sou eu mesma - você me reconhece?
Se eu me chamasse Raimundo
Brazil maior seria meu coração.
Mas eu sou toda rachadura, infiltração, os ratos os pombos a poeira 
tudo me penetra e eu não tenho para onde ir.
Estou aprendendo a conviver com os ratos como convivo com a saudade,
divido minha água potável, eles querem os restos da comida,
e não sei se você me entende.
Brazil eu te dei tudo e agora estou abandonada.

O isolamento me consome,
me seca, e logo pego fogo. Os ratos me penetram,
o fogo me penetra: piedosamente amanhã serei bacharel
mestre cinza doutor cinza PhD mas queria ser saudável. Não me culpe Brazil.
Queria que você lembrasse de mim, 
eu sou excelente.
Brazil eu te dei tudo e agora eu não tenho nada:
sou toda cinzas e você acha que eu mereço.
Estou farto desse lirismo econômico Brazil,
indisposto e por muitas vezes indignado - hoje não!
Agora eu não tenho nada.
Brazil você não era o país do futuro? Eu sou o futuro. Sou também úlceras estomacais,
depressão, o salgado do almoço, o maço de cigarro e o andar no escuro.

Brazil temos que parar de matar nossas crianças. Brazil por que você não lembra? Por que você não lembra? 
O que será de nós? Sim, eu sei que você não está preocupado, 
sim, eu sei que você não lembra. Mas por quê?
Você que me corta nas estruturas...

Brazil quantos suicídios você ainda precisa?
Brazil você precisa me escutar: minhas bibliotecas estão cheias de lágrimas 
e elas me acompanham noites adentro.
Escuridão ratos cinzas ratos; mas se eu fosse Raimundo: e se amanhã eu acabar?
E você acaba antes Brazil, sua querida economia não resiste.

Estou agora entregue, farto, e os meus laboratórios estão cheios de lágrimas
e frustração, famílias, a volta de quem se ama
cinzas fogo cinzas fogo fogo fogo – de quantos você ainda precisa?

Os jornais querem saber o que penso enquanto escrevo poemas
assino contratos e alimento os ratos a poeira as centopeias. 
Sim Brazil eles me penetram e estão bem alimentados. 
Brazil eu sou sério, não quero que você ria de mim.
São tantos Brazil, excelentes, primeiros de suas famílias,
afastados de suas terras, aprendendo a conviver com os ratos e com as saudades.
Alimentam suas dores, seus lattes, e boas doses de metilfenidato para carreira
um Benzodiazepina para se manter firme. Você que me corta nas estruturas, deveria saber.

Brazil
Do you speak english?
What do you do?
Você é yankee?
Qual é o seu norte?
Qual é a sua ideologia?
Qual é a sua história?
Quais são seus traumas?
De quantos mais você precisa?

Ok Brazil: questionar é um crime inafiançável. 
Só quero que lembre que eu te dei tudo
e agora eu não sou nada,
endividada, mofada,
abandonada, cheio de lágrimas, comprimidos anestésicos, 
diplomados fracassados, tristes bacharéis,
ansiosos notáveis,
cinzas fogo, cinzas ratos, cinzas poeira,
cinzas e intimidades incendiadas.

É sobre sonhos que pulam dos meus andares.
Sobre voltar para casa. Você que me corta nas estruturas, deveria saber.   

 

 

rodolfo teixeiralves é antropólogo, mexe com fotografia e vem experimentando produzir alguns vídeos nessa quarentena, em casa. gosta da ideia de falar a mesma por outras formas. escreve poemas mas não está convencido disso. nasceu, vive e pensa a cidade do Rio de Janeiro.