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dois poemas

por talita gonçalves de almeida


Meditação do proletariado é trem

Ar puro do Rio Pinheiros
“O pensamento virá, deixe que ele passe por você”
Deixo passar uma conta e a outra e a treta lá em casa
Cien años de soledad
Pra mais
Medito o chiclete do companheiro ao lado
Bem fundo
Distraio, meu bem
Mas é de nervoso
Quase caio no vão


Certa manhã Gregor Samsa

uma pessoa misofônica estava às 07 no Brás e o trem
estava. com. velocidade. reduzida
mas tinha wifi livre
que permitia ouvir uma música alta
que abafava os sons
de comida
triturando

um homem com uma carteira assinada acordou às 04h
e quis chorar
não conseguiu
então, o homem chegou no Brás e a velocidade estava
reduzida e tinha uma multidão que prometia não deixar ele sair, mas ele não podia atrasar de
novo só porque ficou esperando o choro vir e não veio e correu pro trem que não era mais o
primeiro do dia, já era o segundo.

o homem com uma carteira assinada e que não chorou resolveu que ia sair do trem e descer
no Brás e correr até o metrô
sentido palmeiras

o homem com uma carteira assinada e que não chorou saiu do trem movimentando largo e
forte os braços com cotoveladas que

uma pessoa misofônica com uma carteira assinada estava ouvindo música alta com a ajuda do
wifi livre do Brás quando viu que um homem saía do trem
tentou se proteger, mas errou
a costela doeu
faltou o ar
e tudo ficou len   to
e doen   do
e foi sendo levada pra dentro do trem
o que foi sorte
porque entrou e
ela era uma pessoa com a carteira assinada que saiu atrasada de casa porque quis chorar e
conseguindo teve que esperar o choro acabar

de repente, dentro do trem uma pessoa misofônica com a carteira assinada parou de ouvir a
música alta ainda antes de
voltar a respirar
e viu a estação ficando
e foi indo
com o trem
e enquanto pensava na estação ouviu um barulho longe
de dente
alguém com uma carteira assinada estava limpando os dentes com a língua
longe

uma pessoa misofônica ouviu dentes sendo limpos, e o resto de salgadinho às 07 da manhã
saindo dos dedos pra língua que uma pessoa chupava
e o pão de queijo da lanchonete do Brás era pequeno e cabiam vários na boca aberta de outra
só pessoa

uma pessoa misofônica não respirava, mas resolveu ir para outro lugar do trem
não conseguiu, então, lembrou do livro muito bom que estava lendo e a pontuação era
estranha e as repetições faziam prestar muita atenção e quis ler

mas uma pessoa com a carteira assinada e apertada no trem quis chorar e não conseguiu e não
tendo conseguido teve que mascar chicletes às 07h da manhã pra ficar
bem e
uma pessoa misofônica, respirando pouco, com a carteira assinada pensou:
como é difícil ler no caminho



talita gonçalves é mestra em Literatura pela UEL, trabalhadora de palavras e bandejas, hoje é editora, revisora, preparadora – sobrevivente interiorana – em São Paulo. não é poeta, mas se aventura, gosta de trabalhar criando abordagens de leitura em sala de aula e pesquisando literatura de autoria lésbica. escreveu o posfácio do livro Perante a Lei, de Franz Kafka, primeira publicação da Textura editorial.