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vagão siqueira campos

por elilson


vagão siqueira campos 

O rosa-choque presente nos cadarços e no entorno dos joelhos puxou meu corpo feito ímã. Estamos de frente um para o outro. Ela, com unhas grandes na cor vermelho carmim, não imagina que meu caminho depende do seu. Um homem de blusa azul tropeça no caminho vazio entre nós dois. Outro homem passa vendendo tic-tac e kit-kat. Outra mulher, ao meu lado e de costas para ela, numa posição exatamente para[l]ela, faz da janela espelho e bebe água. Ela não me vê. (Uma criança no outro vagão grita “já sei por quê”. O alto-falante anuncia que nós estamos aguardando liberação da plataforma Botafogo. Nós, não. Eles). Eu e ela parecemos imunes à parada. Eu vejo, ouço e escrevo. Ela rói o esmalte das unhas enquanto toca e olha o celular. Percebo que temos a mesma curvatura de pescoço – eu para o papel, ela para a tela. Noto que dobramos nossos joelhos para não sermos derrubados pelo atrito nos trilhos. Dançamos com a inércia e ela conosco. O atrito veloz do trem sobre os trilhos e os deslizes consistentes que fazemos nos encostos igualmente nos movem. Igualmente nos levam até onde eu ainda não sei. Mas ela sabe. Ela é deus, mas eu estou onisciente e onipresente a ela, sem que saiba. Um homem toca saxofone a dois vagões. Ela rói as unhas. Tento escutar o barulho dos dentes na tinta. Mind the gaprepete-se. Um homem me olha e sorri. Acho que me descobriu. Agora ela mexe as unhas com as outras unhas. Meus dedos e unhas já têm respingos de tinta azul. Manchados como o papel. Percebo que ela e eu temos a mesma cor de pele. Cor de saxofone usado. Queria ouvir o que se passa nos fones de ouvido amarelos com os quais ela escuta. Levanto a vista e ela está me fitando, roendo as unhas. Meu peito corre. Alívio. Ela volta para o celular e o meu observador desembarcou. Atenção, portas se fechando. Qualquer ajuda, dez centavos, cinco centavos, grita um ambulante no fundo e... Corro. Estação Carioca. Ela se prepara para descer. Saio junto. E tudo o que vejo é o cinza das costas de sua roupa rolando com o cinza da escada. Para a superfície