vagão saens peña
Sigo o corpo-pêndulo dela até o meio da área de embarque, até onde o destino que me levava sem que eu pudesse precisar. Cheguei a cogitar que ela estivesse indo para a superfície e me bateu uma frustração [favor ouvir a música de Carlos Paredes, frustração], pois no seu corpo velho eu vi o meu corpo de criança caminhando: pendulando para os lados, concentrando toda falta de ginga nos ombros. Mas ela volta a transitar quando o trem chega, me resgatando da minha infância e do meu depois, que ela prenuncia com seu jeito de andar. Ela entra, senta. Embarcamos, sentamos. Ela me finca no presente do presente. Ela é o corpo da minha ação. Ao redor, na relação retangularizada que o vagão impõe aos nossos corpos, oito olhos me miram de uma vez só, partilhando sem saber deste ato de perseguir e escrever comigo e com a senhora de blusa azul com botões pálidos. Sua mão direita enrugada segurando o queixo me exibe dois anéis religiosos e uma pulseira prata com a palavra jesus. É inevitável: volto a ver os meus ombros quando criança, quando carregava coisas e palavras semelhantes no corpo. Olho para o azul da blusa dela. Olho tanto que incomodo o idoso entre nós dois e um casal de pé, à sua frente. Ele pergunta, a cada paragem, em qual estação está. O casal me olha, se olham e riem. Reflito sobre minha dificuldade de ser discreto, lembro do meu corpo-pêndulo perseguindo o corpo-pêndulo dela na outra estação e do receio que senti sobre ser monitorado. E se confundirem minha ação com terrorismo? E se intervirem na minha perseguição em nome da segurança da senhorinha?
Me incomodo com a palavra perseguição.
Terrorismo linguístico e gastação de tempo.
Presidente Vargas, diz o senhor no nosso meio, perguntando: E agora, vem qual? A senhora em azul responde em voz alta, mas ele faz questão de repetir para o casal à frente. Deveria ter um ar refrigerado aqui dentro, ele fala, fazendo com que eu conheça com mais volume a voz da senhora pendular em azul. Meu dedo do meio está completamente azul, coberto da tinta que guarda este percurso. Eles conversam sobre frio, calor e, claro, estações. A pergunta que ele ama fazer revela o meu próximo destino: minha guia diz que descerá no Largo do Machado. Ele e o casal desejam feliz natal. Descem na Cinelândia. O lugar onde o perguntador sentava é ocupado por uma mulher vestindo azul. Um tom de azul que parece um meio-termo entre o azul da minha caneta e o azul da blusa de quem acompanho o tempo. Nem preciso dizer que todas as coisas dentro do metrô estão me revelando um sem fim de azuis. Estava divertido. Agora está quase insuportável. Quero outro signo, quero outro corpo. Quero o subsolo do Largo do Machado. Ei-lo.