vagão general osório
A mulher com suas três bolsas, eu e os demais usuários somos convidados a desembarcar. Aliás, é dito, em português e em inglês, que devemos sair do vagão, pois desembarcar [um homem com bolsa nas costas me imprensa entre a porta do vagão e o ferro de segurar. Um bebê de braço chora alto. Outro homem bate as mãos no peito e fala para um outro homem é hoje, parça. Arpoadorzinho maneiraço] is a mandatory. A mulher vai com suas bolsas, pasta, exame, livro, justiça e tatuagem e eu fico com um desenho de sanduíche repleto de picles. Estou adjetivando o design como cafona por dentro. Paro. O trem também está parado. Quero encontrar outro corpo motivador. Me incomodo com a palavra motivador. Penso-escrevo estimulador e estimulante. Continuo incomodado. As pessoas estão subindo as escadas rolantes às pressas. Estamos todos na estação final. No lado em que estou, não há como embarcar. Paro mais uma vez e olho para os corpos, enquanto penso e escrevo. Não consigo ver algo em alguém que me faça seguir. Tenho que decidir se troco de lado para pegar o mesmo trem voltando ou se caminho mais um bocado e sigo para a linha das Olimpíadas. Paro. Solto o ar algumas vezes pelos narizes. Oito vezes. Não estou me vendo, mas sei que meu rosto desenha aflição. Olho uma cutícula escapando do meu polegar esquerdo. Agacho e deito o papel no chão. [Fiquei catucando a cutícula com os dedos e, não resisti, arranquei com os dentes. Virei o rosto para a esquerda e a minha vista atravessou uma porta de vidro fechada, os adesivos colados nela, o vagão e seus ferros, além da outra porta com seu vidro e adesivos. Levantei]. Do outro lado, fazendo uma linha com meu corpo, está um homem negro. Com bermuda cáqui e camisa branca de gola e listras azuis. Como o meu pai, negro e careca no centro-em-cima, mas com cabelos ao redor. Ele olha para a porta de vidro fechada, acho que nem me percebe deste lado. E balança a cabeça para cima e para baixo, afirmando o que eu não faço ideia. A afirmação parece que é longe daqui. Desejo persegui-lo. Subo as escadas, seguindo para o outro lado. Este texto tem uma pausa considerável. Chego quase perto do homem. Nossa distância é uma entrada para porta de vidro e pessoas e linha amarela no chão. Me pergunto de onde apareceu tanta gente. As portas se abrem, sinto um dedo no meu ombro. Um rapaz me perguntou o sentido da linha. Rindo, respondi. Entramos. O vagão está lotado, quase não dá para escrever. Olho para a direita, olho para a esquerda, passo a vista nos assentos em que é possível passar a vista: o homem sumiu. Fico de ponta de pés, viro o rosto para todos os lados, passando a vista mais devagar. Não é possível é a frase que estou pensando. Estou pensando. Estou escrevendo. Estou escrevendo muito, penso. Estou cansado. Estou imprensado. Estou frustrado. Não dá para sair pelo vagão catando o careca. Desisto e estou me questionando por desistir. O trem arranca. Passa um menino, não sei como, vendendo kit kat. Deve ter uns oito anos. Tem os pés e as sandálias havaianas encardidos. Se ele consegue passar eu também consigo, vou atrás dele. É a frase que eu penso. Não vou. Estou me prendendo. Estou imobilizado em movimento. Bem perto dos meus olhos, segurando firmemente o ferro, há uma mão negra, saliente e brilhante de mulher, com anéis e esmalte vermelho nas unhas. Lembro da mão de Elza Soares, mão que já beijei algumas vezes na vida. Parece exatamente com a dessa mulher. O menino vai e volta vendendo, dá um empurrãozinho de leve nas costas para poder passar. Estou rindo, admirando sua ousadia, mas meu olhar também tem tristeza. Olho para ele, olho para as mãos da mulher. Muitas vezes e sem parar. Tenho dúvida sobre o que me chama mais atenção. Fico turvo. Olho para o guri, para as mãos e vejo Elza cantar. Canto enquanto escrevo. Quando, seu moço, nasceu meu rebento, não era o momento dele rebentar. Com minha desengonçada voz, de uma hora para outra, ousado. Minha cantoria é baixa, mas queria ver a cara de reprovação, interesse ou desdém que a mulher com mão de Elza está fazendo. Mas tenho vontade de chorar. Paro de cantar. O menino some. Também. Penso que quero sair deste vagão antes que a mão da mulher também suma. Estação Siqueira Campos. O ponto de partida. Estou escrevendo andando e um homem diz não é nada. Não sei se de fato bati no seu corpo ou se ele pensa que assim o fiz. Ele parece contidamente transtornado como eu. Olho para ele e abro um sorriso sem dentes. Ele tem dreads e carrega um instrumento grande nas costas, mas encapado, talvez um violoncelo. Eu não penso e nem escrevo, mas sinto que vou amar alguém com violoncelo. Ele para a minha escrita. Você também é artista, não é? E esse sotaque, vem de onde? Eu respondi com uma pergunta [sou?] e uma afirmação [Recife]. Ele colocou a mão no peito e disse que seu maior ídolo era um recifense, Naná Vasconcelos. Eu respondi dizendo que a minha era uma carioca, Elza Soares. Subimos as escadas falando dos dois e contei da amizade entre Naná e Elza, relatei vários feitos de Elza que ele não conhecia. Ele relatou feitos de Naná que eu não conhecia. Feitos do país, que não sabe. Passamos da catraca e ele apertou minha mão. Obrigado pela ideia, ele disse, terminando com o vagão: siga escrevendo aí sua ideia.
É inevitável: continuo com vontade de escrever, não sei se de perseguir. Este texto quer escorrer para dentro, mas contraria seu programa e sobe comigo para a superfície.