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três poemas

por lorenzo ganzo


Um filme de Jocelyne Saab

Voltamos ao cessar fogo. Armistícios
são as férias dos fuzis russos e o cerco,
o limite azul (seguro) dos seus contornos.
A qualquer momento retornam ao trabalho.

Crianças telepáticas que esquecem de crescer,
fazem comércio emulam sírios, persas, fenícios
e o seu sangue tem a cor das flores e das romãs.

No Líbano, até os cavalos correm mais depressa que o tempo
é o que se escuta desta roda-gigante de frente para o mar
a quem pergunto pela vida futura, meu oráculo, meu puzzle.

Desaparecem as linhas das mãos e por isso
levamos agulhas escondidas dentro das roupas.

O que restou das casas
foi a verticalidade de certas palmeiras
a força do exílio e o êxodo das telhas.

Deitado esperando a noite neste tapete é a lua
quem se inclina para olhar, quem sabe, dançar
amar uma última vez - estas ruínas.


Vapor : Radar

No bairro coreano
a saudade na cumbuca
são dois palitos o calor
espetado no inverno
é o porquinho de cerâmica
colado na parede.
deve haver uma praia por perto
mas no lugar das bóias e guarda sóis
areia, pó e cimento.
alguma obra, ferramentas curvas
o nível da cantareira
cada vez mais baixo
e uma porta entreaberta
para a estranha oficina
onde ninguém trabalha
a atenção no tabuleiro
e os botões brancos
são os pães cozidos no vapor
o jogo é a sorte
o ruído de uma língua
que não se sabe onde começa
onde termina. as mãos
e a ortografia secreta
de quem segura o peixe
sem aprisioná-lo.
a amizade, o amor
e o tropeço nas raízes jovens.
um umidificador de ar
e o pequeno vapor ascendente.
não sei se é isso
que faz lembrar o pacífico
as baleias, a pesca, as duas coreias
o emprego para salvar a família.
a américa.


Campos de Ourique

À espera da chuva que vai levar tudo embora
um momento único para encontrar-me com meu anjo,
mas ele não vem, dá para trás, não comparece, foge.

É atrapalhado o meu menino das sandálias
não compreende calendários, as notícias ele não lê.
Não sabe nada do que se passa em Quito, Porto Alegre
Alepo ou Lisboa. Às vezes penso que é cruel o meu anjo.

E no entanto, por alguma razão, acredito ser obra dele
este jardim onde me sento à sua espera e permaneço
quieto ou que é seu este poema de Jaime Gil de Biedna

que fala do veloz amanhecer de Ciénega e dos canaviais,
de um pedido de esperança que não venha de Miami
e, por acaso, hoje salvou-me a vida nas asas deste anjo.



lorenzo ganzo nasceu na cidade de Porto Alegre em 1992. formou-se em psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul defendendo um trabalho às voltas da poesia de Roberto Bolaño. publicou, em 2019, um pequeno livrinho, Luz de Fundo, pela Guaipeca Edições. atualmente cursa o mestrado de Estudos Portugueses da Universidade Nova de Lisboa, cidade onde se demora, desfaz mapas e escreve poemas.