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nesta seção reflito sobre a dificuldade e surpresa de ser você

por júlia manacorda


nesta seção reflito sobre a dificuldade e surpresa de ser você

p/ o sapo

em trechos anteriores,
tentei explicar como tudo isso foi possível
como por um mês nos falamos
      assiduamente
por todas as madrugadas sem saber
como eu reconheceria seu rosto

havia visto apenas você
vestindo um guarda chuva
e seus olhos imensos quando
bebê

e você que só pôde me ver
                               em miniatura
sobre a mesa de trabalho de um velho
australiano

sobre tudo isso já falamos inúmeras vezes, óbvio
sem chegar à conclusão alguma, talvez possamos
compreender os efeitos de dedicada atenção hoje
porém
                                                   nesta seção
reflito sobre a dificuldade
e surpresa de ser você
                                  um sapo que toca shamisen
e solta laser pelos olhos enquanto
  anuncia o fim da cultura
me diz coisas como

você sabia que o governo chinês, de Xi Jinping, sequestrou a criança que seria o futuro Dalai Lama? pois há pouco, lhe contava em tom de boa surpresa como XiJin mantém seu controle sobre a guerra tarifária citando poetas chinesas do ano mil

você - a boa virtude -
não se seduz fácil

lhe conto
Ashbery orna a escada de sua casa em Hudson com 13 paisagens de Hiroshige
2 Hokusai se encontram no hall de entrada e você
                                                                               me pergunta
se sei o significado literal de ukiyo-e
digo:
não
você:

imagens do mundo flutuante

diz amar o declínio do ukyio-e
a transição dos 800 para os 900
e que ornará nossa casa com

imagens do mundo flutuante

primeiro, uma mulher de kimono azul e flores brancas desembaraça os cabelos -
 longuíssimos - outras paisagens e algumas casas - abertas -, porém, um homem, com seu burrico, que
corta os bambus da estrada e abre a vista para o mar chama a atenção
uma mulher tinge os lábios e outra prende o kimono, segurando a fita com a boca. o kimono ainda aberto
revela a linha dos seus seios
e esta mulher nua
que prepara a água para enxaguar o rosto
minha favorita 

penso o cômodo de cada pintura e nos varais e agora nas portas e de como você pensa em usar portas
como mizoguchi faria penso também que minhas costas são portas para você, agora as abra, agora as
feche



júlia manacorda, 1991, Niterói, traduz e pesquisa John Ashbery. seu primeiro livro No ano de Blade Runner: a crise constitucional foi publicado pela Garupa em 2019.