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cinco poemas e uma prosa

por julia raiz


quero te dizer vá pra cama
todas as noites no ponto mais alto
quita tua armadura deixe-a jogada num canto
sem polimento como articulações que se desgastam com o uso me deixa ver
teu peito aberto deixa que eu veja
os seios que encobre por faixas encardidas
sua família quis comer nossas batatas
sua família quis que comêssemos plástico
escombros pentes de dentes quebrados
não finja que está nas imagens das paredes
conosco em porto rico
em nicarágua no meio da floresta
não venha chorar pra mim dizendo
minha filha não tem um macho
a unidade de um corpo, uma mentira
sua batalha contra a cama, uma mentira
deita e dorme! você não é ricardo III
você não é nem cria de reinos
não tem o monopólio da agonia
para e agradece que do lado de lá
uma mulher que delira te escreve
um manual de sobrevivência aos sonhos
aproveita e se livra dos brasões
percebe que a joia antiga que carrega no pescoço
antes de medalhão é cartolina
é resto de papelão molhado
não posso com a imagem do seu dorso de pijama
dorme nu porque o que não precisamos agora
é da prudência de um cavalo de capa que aceita
de pança cheia a baia

***

ontem me meti a comer um bolo americano
não um bolo norte-americano
não um bolo conivente
um bolo de maçã não uma apple pie
um bolo de maçãs escuras
importadas da argentina
ou de maçãs fuji claras e novinhas
de todo jeito não eram maçãs colhidas à força e
à força enfiadas no fundo de formas
mordi maçãs do bolo de maçã
e reconheci não o cheiro da casca
a trajetória da casca
próxima a fronteiras invadidas
casas queimadas até o chão
caixas de mingau pisoteadas
nunca descasco maçãs
nunca como a polpa tirada com colher
como uma pessoa pequena e desdentada
uma vizinhança bombardeada por
maçãs foi o que reconheci
cravar uma maçã nas costas de alguém e esperar
que apodreça que ideia terrível!
pessoas seguem sem lugar para estar
e suas casas simplesmente não podem
ser maçãs
depois do bolo de madrugada
não consegui levantar a tempo e vomitei em mim
restos apáticos de maçã
também maçãs inteiras com cabinho
maçãs desertoras do exército de maçãs
fiz que sim com a cabeça pra elas
e as ajudei em seu caminho de volta
porque sou uma rebelde de verdade
mas também porque sou muito enganada
pela fantasia de que é possível
comer e deitar
comer maçãs e logo depois deitar

***

eu nunca posso tombar
você disse
você tá sempre mal
eu preciso ficar em pé
você disse
se tivermos um filho com síndrome de down
se ele quiser ser chamado de sônia
em vez de luisito
você não poderá ficar tantos meses fora de casa
você disse
me voy a tombar em navarrete
você disse
seu pai ainda vive lá
servindo torresmo e gim tônica

***

quando descobri que tentou se matar virei um coyote
seu pai continua a me mandar fotos de árvore
a menina salvadorenha pergunta em voz alta
o que é natural ou antinatural se a natureza muda
num piscar de olhos você fez anos está em choque
eu uivo foooooooome
os remédios pra dormir não funcionam
a menina picota as fotos e os pedaços junta
numa caixa com carne vermelha
lágrimas chovendo sobre meu focinho
eu choro por
mim você chora por
nada a cerejeira madura na frente de casa cresce de um jeito ou de outro
  
***

a poeta de nome costacurta
num evento com mulheres bandidas
mulheres que são tataravós
(uma delas com 32 anos de corporação militar)
nunca disparou uma arma
com uma tiara de flores na fronte
a poeta de nome costacurta
lê um poema sobre a criança curada
pelo vinagre de maçã
lê outro poema sobre uma família
que tira fotos com canhões e aerocaças
a filha quer entrar pelos fundos dos tanques
levantar-lhes a cauda quer trepar nas hélices
molhar de propósito o lençol
para roubar do pai o lugar na cama
a poeta de nome costacurta
nunca leu poemas
no terreno baldio dá de cara com seu maior sonho:
uma cabana de tálbua onde ela pensava morar
se um dia fosse abandonada à rua
pra estar com os ferreiros
a poeta de nome costacurta
é puerto riquenha
ninguém gosta dela em massachusetts ela
deveria se apressar e publicar logo um livro
se apressar e lançar alguma merda que preste


O mais, o mais maravilhoso fio

A primeira cena, ela pensou, podia ser a de Délia no balcão, olhando para o reflexo de si mesma na bandeja. Pronuncia devagar o nome das três colegas de trabalho, na cintura o avental de todos os dias, imagina quem seria se servisse mais milkshakes do que café com leite. Depois mudou de estratégia, pensou que seria mais curioso começar com Paulo na frente do espelho, tingindo seu cabelo de verde pra preto de volta. Começar pelo meio, com uma mudança de identidade, revelar uma personagem mais sóbria, mais complexa. Escolhesse o que fosse, as duas cenas estavam marcadas pela transformação, um Paulo moreno ou uma Délia agrupando as colegas pra anunciar sua demissão. Estou indo embora, Mas no meio do expediente, Sim no meio da tarde descobri que tenho uma doença rara.

Ela pensou que os dois personagens poderiam compartilhar essa mesma doença rara, ela teria que pesquisar um nome pra essa nova condição ou investir numa que já existe. Délia, a garçonete, e Paulo, um boneco Ken, compartilhariam essa doença rara que vai deixando o cérebro cada vez mais lento, introspectivo, encharcado por um interesse profundo em si mesmo. Paulo e Délia, doentes como estão, passam muitos minutos por dia olhando o próprio reflexo em superfícies diversas. Paulo queria ter seu cabelo escuro de volta, a dona tinha pintado sua cabeça de verde porque agora os meninos de K-pop estavam com tudo. O que Paulo mais queria além do cabelo preto de volta era comer o cu da sua amante, mas ele não tinha nem genitália nem imaginação, era tão liso lá embaixo como era em cima, sem genitália e sem cabelo. Seu cabelo, na verdade, era só uma mancha de tinta espalhada pela cabeça. De Délia, ela não sabe o que queria além de pedir demissão. Délia talvez quisesse começar a escrever contos.

O primeiro conto de Délia começaria com um homem recebendo uma multa. Uma multa que corresponde a um lugar onde ele esteve, num horário em que ele esteve, mas referente a um carro que não é o dele. A multa diz que esse homem era no momento da infração o condutor de um outro carro, um Santana branco. O homem desconfia de perseguição política. Estão armando pra ele. Decide, em vez de contestar a multa, refazer o trecho que percorreu no horário da infração. Tinha ido a uma cidade do interior verificar a situação eleitoral, não sabia muito bem por que, ele seguia ordens embora elas escapassem do seu entendimento. Mesmo assim não pensou em levar a situação para o líder do partido. No meio do trajeto, começou a sentir muito sono, mal conseguia manter uma distância segura do próximo carro e a pessoa que estava no assento do carona achou que o homem fazia de propósito, provocador que era. Mas a verdade é que estava mesmo com as pálpebras fechando por causa de um sono incontornável. Délia parou neste ponto da história, não sabia como continuar dali.

A amante de Paulo é uma mulher adulta e humana. Talvez o mais inteligente a se fazer seja cruzar a história de Délia e Paulo pra além da doença. Délia e Paulo poderiam ser amantes. Délia uma garçonete de meia idade que quer escrever contos e Paulo um boneco Ken sem pelos. Délia vai escrever apenas thrillers com perseguições políticas ou tem outros interesses? Paulo não tem mechas para separar, só precisa erguer a mão e começar a espalhar a tinta por toda a extensão do couro cabeludo. Mas não faz isso porque está mergulhado no próprio reflexo como se todas as coisas que quisesse com tanta força antes, principalmente a libertação, estivesse ao seu alcance ali e agora, ele tinha se transformado naquilo que se contempla antes de contemplar. Isso é o bastante para estragar todos os planos de mudança que ela tinha em mente. Délia, parada no balcão, não enxerga nada pra além de seu contorno retorcido na bandeja, uma massa ondulante e infinita que brilha conforme ela se move. Mas ela se move pouco. Pedir demissão não é mais um desejo ardente em Délia porque agora ela não mais entende o que é simplesmente sair andando e mesmo que se esforçasse também não conseguiria se lembrar que existem três moças que trabalham com ela e que estão por aí atarefadas servindo café com leite. As três moças têm nome mas isso também não importa.



julia raiz é escritora e doutoranda na área de tradução. edita os blogs literários Totem & Pagu, e Pontes Outras, dedicado à tradução de literatura escrita por mulheres. em Curitiba faz parte do coletivo de escrita membrana. seu primeiro livro “diário: a mulher e o cavalo” saiu em 2017 pela ContraVento editorial. lançou o megamini “p/ vc” pela 7Letras em 2019.