O corpo em “Contingente”, de Adriana Varejão
“Contingente“ é uma fotografia de autoria de Adriana Varejão, posta ao público em 2000. A obra consiste de um retrato em formato de paisagem de uma mão, riscada, sobre uma parede ou um chão turquesa, também riscada, completando uma horizontal vermelha em conjunto com a mão coadjuvante, assinalada como “equador”.
A primeira constatação do espectador acaba por ser, de cara, as cores – cores quase opostas, turquesa e um vermelho reduzido, contracenando com a pele, o orgânico. Em uma próxima etapa da observação, mostra-se a semelhança com o continente americano, que, afinal, é cortado pela latitude equatoriana da mesma forma que a mão da artista é demarcada. Talvez se encare a similaridade do palmo, centralizado, com o país Brasil, sua silhueta sugerida pelas dobras e limitações que encontram casa nesse pivô central.
Continente, de Adriada Varejão. Fonte: site da artista.
O corpo age como continente e, parafraseando a poeta Lorena Martins, como lugar das experiências, portanto também da memória pessoal. Ocupa espaço e atua como o continente do ser, refúgio e tábula rasa das experiências, delimitando-se também diante da alteridade. Varejão evidencia os paralelos entre o eu e o gigante, o invisível delimitador, a massa de terra aleatória e emergente no oceano inabitável que é aquilo que não somos nós.
Porém, leituras paralelas não me parecem mais relevantes do que a comunicação mais aparente da obra: a da evidenciação da predeterminação dos corpos. O trabalho “Contingente Yanomami”, feito pela artista em 2003, após residência em Demini, território Yanomami, torna-se crucial na análise da linha que a obra original acaba por tomar. Dialoga com “Linha do Equador" e evidencia seu questionamento da delimitação de atuação e existência dos corpos humanos a partir de linhas imaginárias, cujas extensões, limitações, fronteiras e muralhas são resultado de decisões feitas por uma esfera de poder alienada às pessoas e terras as quais governa. A partir da sobreposição desses mesmos limites de atuação, contorna a partir do próprio corpo o espaço que lhe é conferido e imposto, e procura trazer à tona como fronteiras geográficas falham em ser apenas atuantes sobre terras quaisquer corpos d’agua e naturezas.
A violência da muralha e da violação da liberdade do indivíduo é estabelecida de maneira sutil a partir da escolha do vermelho, pondo-se imponente contra seu fundo,que esbanja espessura e peso, temas frequentemente explorados no trabalho de Varejão.
“Contingente" é delicado, claro, experimental e universal, e se posiciona de maneira urgente, não somente na linha do tempo da artista, como também diante do não-diálogo e tendência necropolítica atual.
Continente Yanomami. Fonte: Facebook do Instituto Tomie Ohtake
alice garambone é artista visual e estudante de Artes Visuais na UERJ. retorna ao Rio após permanência de um ano na USP e procura investigar noções de consumo de mídia de sua geração, corpo, volume, textura, símbolos e composição. atualmente produz pinturas e esculturas.