da série “ao mar entrego os meus olhos”
pista de corrida
equilibro a faca na barriga
minhas sobrancelhas têm o formato
de aranhas
eu tento não piscar e o capitão insiste
na aceleração dos pés
as mãos em frente ao peito
erga firme as pernas
delimite a ação das suas costas
respire como se a faca lhe tirasse
o fôlego e a vista de uma vez só
meus pés precisam obedecer ao mar
depois devem obedecer ao meu corpo
quando pulo ouço as notas de todos os pianos que já toquei
imagina uma música no volume máximo em alto-mar
para onde vai o som?
antes de embarcar mirei nos olhos
de nossa senhora do bom despacho
por favor me tire os fantasmas
e me deixe correr como quem
tudo alcança
e nada vê
embarcação de número vinte e seis
sinto a popa quase imóvel
âncoras são responsáveis
por velar noites marítimas
penso que você sonha
com praias de águas
redemoníacas
prestes a decidir se o porto
será agora ou só quando
chegar o seu tempo de
concentração no afeto
faz tantos dias que não sente
areia entre os dedos
ou mesmo me conta
dos tropeços de sua infância
as mães não são para nos levar a sério
você me disse
as mães são como uma combinação
mal executada do que nos causa perigo
paciência se não estará aqui
para deixar pistas à espera
do próximo detetive eu quis muito
te arranhar quando ouvi a regra
que se entenda o engasgo
da mesma forma que se
admitem os relâmpagos
existem duas palavras que eu só
consigo dizer em voz alta
no mesmo ritmo da sua risada
e isso me causa profunda tristeza
é como sentir saudade de falar
mesmo falando
embarcação de número vinte e sete
observo seu corpo rente
ao chão do convés
a imagem dos olhos abertos
em descamação prestes a cair
porque não suportam a força
das grandes seções oceânicas
eu não consigo gritar
sei que você se deita
porque escreveu
em si mesmo:
estar seguro
não faz parte
da ordem do
corpo
e todas as vezes
em que esteve
solto
comigo
no chão
quedas abraços
as posições mais
estranhas possíveis
aos beijos
mesmo quando
não se pode
dizer que o amor
destrói tudo
porque suga as vigas podres
do castelo à beira-mar
de longe observo
você levanta as mãos
eu sei que conhece
a língua dos céus
vai chover muito forte
me despeço de novo
e repito aquela frase
que dizemos todas as noites:
trate com carinho a força da morte
e negocie com desprezo o que dura
mais do que cinco marés
priscilla campos nasceu no Recife. é jornalista, crítica literária, poeta e doutoranda em Literatura Hispano-Americana pela Universidade de São Paulo (USP). pesquisa a relação entre literatura e imagem na obra da escritora uruguaia Marosa di Giorgio (1932 - 2004). publicou, em poesia, o gesto (nosostros editorial) e, em formato ensaio, Nenhum muro à altura do peito (Edições Macondo).