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ao mar entrego os meus olhos, três poemas

por priscilla campos


da série “ao mar entrego os meus olhos”

pista de corrida

equilibro a faca na barriga
minhas sobrancelhas têm o formato
de aranhas
eu tento não piscar e o capitão insiste
na aceleração dos pés

as mãos em frente ao peito
erga firme as pernas
delimite a ação das suas costas
respire como se a faca lhe tirasse
o fôlego e a vista de uma vez só

meus pés precisam obedecer ao mar
depois devem obedecer ao meu corpo
quando pulo ouço as notas de todos os pianos que já toquei
imagina uma música no volume máximo em alto-mar
para onde vai o som?

antes de embarcar mirei nos olhos
de nossa senhora do bom despacho
por favor me tire os fantasmas
e me deixe correr como quem 
tudo alcança
e nada vê


embarcação de número vinte e seis

sinto a popa quase imóvel 
âncoras são responsáveis
por velar noites marítimas
penso que você sonha
com praias de águas 
redemoníacas 
prestes a decidir se o porto
será agora ou só quando
chegar o seu tempo de 
concentração no afeto 

faz tantos dias que não sente
areia entre os dedos
ou mesmo me conta 
dos tropeços de sua infância 
as mães não são para nos levar a sério 
você me disse
as mães são como uma combinação 
mal executada do que nos causa perigo

paciência se não estará aqui
para deixar pistas à espera
do próximo detetive eu quis muito
te arranhar quando ouvi a regra
que se entenda o engasgo
da mesma forma que se 
admitem os relâmpagos

existem duas palavras que eu só 
consigo dizer em voz alta 
no mesmo ritmo da sua risada 
e isso me causa profunda tristeza
é como sentir saudade de falar 
mesmo falando


embarcação de número vinte e sete

observo seu corpo rente
ao chão do convés 
a imagem dos olhos abertos
em descamação prestes a cair 
porque não suportam a força 
das grandes seções oceânicas 

eu não consigo gritar 
sei que você se deita
porque escreveu 
em si mesmo: 
estar seguro
não faz parte 
da ordem do
corpo

e todas as vezes
em que esteve 
solto
comigo
no chão
quedas abraços
as posições mais 
estranhas possíveis 
aos beijos 
mesmo quando 
não se pode
dizer que o amor
destrói tudo 
porque suga as vigas podres 
do castelo à beira-mar 

de longe observo 
você levanta as mãos 
eu sei que conhece 
a língua dos céus 
vai chover muito forte 

me despeço de novo
e repito aquela frase
que dizemos todas as noites: 
trate com carinho a força da morte 
e negocie com desprezo o que dura 
mais do que cinco marés



priscilla campos nasceu no Recife. é jornalista, crítica literária, poeta e doutoranda em Literatura Hispano-Americana pela Universidade de São Paulo (USP). pesquisa a relação entre literatura e imagem na obra da escritora uruguaia Marosa di Giorgio (1932 - 2004). publicou, em poesia, o gesto (nosostros editorial) e, em formato ensaio, Nenhum muro à altura do peito  (Edições Macondo).