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a garota de belfast ordena a teus pés alfabeticamente

por Marília Garcia



o editor desta seção reordena ‘les rendez-vous d’anna’ analogicamente

a ideia era escrever um poema que conversasse com o livro,
a teus pés, de ana cristina cesar.
assim, cheguei a uma “lista” com todos os versos


                        a mim também pareceu uma boa ideia
                        ler a Marília de acordo com o
                        procedimento que ela havia escolhido
                        para ler Ana C.

                       mas logo que comecei esta
                       reescritura, muitas coisas se
                       colocaram no caminho

                       sem a menor inclinação de auxiliar o trabalho:
                      o fato de eu não ter passado por outro poema
                      antes, como fez Marília com

a “canção de belfast”, de joseph brodsky, sobre uma garota de cabelos curtinhos que vivia em belfast.

mas agora penso
que talvez pudesse ser a própria Marília realizando esta ação:

a garota dobrava as memórias como um paraquedas de a teus pés.

penso também
que Marília e Ana C. poderiam ter se dado
bem apesar de não ter conhecido a
 segunda.

talvez pudesse ser a própria Ana C. realizando estas ações:

a)     digitar todos os versos do livro

b)      e colocar os versos em ordem alfabética.

e também as três, Ana C., a garota de Belfast e Marília, talvez pudessem realizar estas ações:

a)   digita aos poucos a teus pés,

b)     ela para na letra A e lê os versos em voz alta.

c)     ela mora numa cidade perigosa,

d)     ela quase não sai, fica muito em casa. 

e 

e)  cozinhava seus legumes em casa.

 

Marília nos diz, através do original deste texto:

 

mas como fazer para partir da própria matéria do poema?
mas, e depois, o que fazer com os versos em ordem alfabética?

Marília imagina a cena:

 

a garota de Belfast
digita aos poucos a teus pés,
ou melhor, a garota copia o livro à mão em folhas de papel. ela para na letra A e lê os versos em voz alta

depois, pensa num filme
que me envergonho de não ter visto: je tu il elle
, de chantal akerman.
segundo Ana C.,

 

filme de mulher, destransando as interioridades,

 

será que vai ainda ser possível
ler a Marília nesta versão que construo de seu texto? será esse um exercício possível,

 

para tentar chegar na matéria

(?)

 

acho que Marília pensava sobre isso, quando escrevia:

será que ainda seria possível ler nesta lista a mesma ana cristina cesar?

segundo a Marília,

numa carta de 13/6/80,
escrita no período em que morava na inglaterra, ana cristina cesar diz:
“vimos um filme de uma belga chamada chantal akerman
je tu il elle – filme de mulher, destransando as interioridades, very slow and disturbing. no aniversário, vi outro dela, les rendez-vous d'anna, achei que o título era para mim.”

..

 

les rendez-vous d’anna

primeiro, escolher um livro:
a teus pés, de ana cristina cesar.

a ideia era escrever um poema que conversasse com o livro, mas como fazer para partir da própria
matéria do poema?

digitar todos os versos do livro para tentar chegar na matéria
e colocar os versos em ordem alfabética.

assim, cheguei a uma “lista” com todos os versos
de a teus pés.
                        será que ainda seria possível ler nesta

lista a mesma ana cristina cesar?
mas, e depois, o que fazer com os
versos em ordem alfabética?

lembrei de um poema que tinha lido havia pouco: a “canção de belfast”, de joseph brodsky,
sobre uma garota de cabelos curtinhos que vivia em belfast.
a garota dobrava as memórias como um paraquedas e cozinhava seus legumes em casa.
imagino a cena: a garota de belfast digita aos poucos a teus pés,
ou melhor, a garota copia o livro à mão em folhas de papel. ela para na letra A e lê os versos em voz alta.
ela mora numa cidade perigosa,
ela quase não sai, fica muito em casa.

 

penso num filme passado indoors: je tu il elle, de chantal akerman.

numa carta de 13/6/80,

escrita no período em que morava na inglaterra, ana cristina cesar diz:
“vimos um filme de uma belga chamada chantal akerman

je tu il elle – filme de mulher, destransando as interioridades, very slow and disturbing. no aniversário, vi outro dela, les rendez-vous d'anna, achei que o título era para mim.”

 

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Sobre o autor:

Marília Garcia nasceu no Rio de Janeiro e atualmente mora em São Paulo. É tradutora e autora, entre outros, dos livros: Um teste de resistores (7letras, 2014) e Câmera lenta (Companhia das Letras, 2017).