SEÇÕES

Nos confins de um livro: o exílio em Maria Gabriela Llansol

por Juliana Travassos


Cidade de Lisboa. Onde nasci. No desejo de coisas que não via, fui mantida até a minha saída libertadora para o exílio [...] E talvez daqui a um tempo, numa cidade hermética como esta, nem floral nem aérea, nem arbórea, uma pessoa descendente de mim, mulher sem filhos, seja chamada pelo desejo do exílio e afirme a sua vontade noutro território deste país, a Bélgica, ou nos campos desta terra, ou em qualquer outro lugar benéfico do mundo.

                                             Maria Gabriela Llansol
                                             Lisboa, 14 de junho de 1976

  

No momento em que escreve o enxerto acima, fragmento de um pequeno texto chamado “A vocação do exílio”, Maria Gabriela Llansol encontrava-se em breve regresso a Lisboa, sua cidade natal, em seu país de origem, do qual havia se exilado há mais de dez anos. Agora, vivia na Bélgica. Nesse trecho, uma espécie estranha de território é desenhada. A autora evoca a imagem de um país interior a outro, como que sobreposto, desfazendo qualquer lógica cartográfica. Ali, a Bélgica é um território de Portugal.
Outros pontos inusuais ainda podem chamar a atenção no trecho que escolhi como epígrafe: primeiro, a relação não parental de descendência – uma mulher que, sem filhos, tem herdeiros, porvindouros; depois, a libertação que o exílio significou para autora – condição tratada jurídico-politicamente como marginal: ou fuga de um castigo ou castigo em si mesmo (i.e., no mínimo, a perda dos direitos políticos).
O exilado[1](assim como o refugiado, o que talvez torne mais preciso usar o termo desterrado) representa, para o pensador contemporâneo Giorgio Agamben, um elemento inquietante no ordenamento do Estado-nação. Ele observa que uma das características desse ordenamento na contemporaneidade é o rompimento da continuidade entre duas categorias que, antes da Primeira Guerra, eram inseparáveis: a de homem e a de cidadão. Desde o direito romano, o eixo nascimento-nação era o que legitimava o homem-cidadão – e também na mudança da categoria de súdito para a de cidadão, engendrada no iluminismo, esse eixo seguiu definidor. Ou seja, o nascimento em si mesmo, a vida nua – a simples humanidade – concedia aos homens direitos inalienáveis. Os conflitos nacionais do início do século passado, por sua vez, colocam as nações em estado de exceçãoe, com isso, novas normas políticas de desnaturalização e desnacionalização maciça de cidadãos foram introduzidas. São milhares de refugiados e apátridas considerados indignos de suas cidadanias por toda a Europa. O extremo desse processo se deu com as leis de Nuremberg sobre a “cidadania do Reich”: aqueles levados aos campos nazis foram destituídos de cidadania – não só materialmente, mas também juridicamente, nos explica Agamben –, o que instituiu a ideia de que a cidadania (e os direitos que a acompanham) era algo que estava em discussão e do qual precisava fazer-se digno.
A figura do desterrado, segundo Agamben, concentra uma contradição essencial da biopolítica no pós-Guerras: 

De um lado, os Estados-nação realizam uma nova inversão massiva na vida natural, porque distinguem em seu seio entre uma vida, por assim dizê-lo, autêntica e uma vida nua desprovida de todo valor político (o racismo e a eugenia nazistas somente podem ser compreendidas se os situarmos neste contexto); de outro lado, os direitos do homem, que somente tinham sentido como premissa dos direitos do cidadão, se separam progressivamente destes e são utilizados fora do contexto da cidadania com o suposto fim de representar e proteger uma vida nua que cada vez mais se vê expulsa para as margens dos Estados-nação, para logo depois ser recodificada numa nova identidade nacional (2013b, p. 7).

 E é graças a essa contradição que, até hoje, os organismos que têm se dedicado a tratar do problema dos refugiados encontram dificuldades em lidar com o assunto. O desterrado, a quem resta apenas a vida nua, está dentro e fora da lei. Se lhe resta ainda a humanidade, já não é cidadão, já não está inserido em uma ordem social de pertencimento. O texto avança e Agamben, enxergando no exílio um dos conceitos indispensáveis para pensar as fronteiras da vida na modernidade, reconstitui uma arqueologia da noção de exilado. Em resumo, o que nos interessa é que na Grécia Antiga havia uma controvérsia se o exílio era um direito ou um castigo. Afinal, a condição de apátrida era também uma condição dos filósofos, que não exerciam voz na pólis. E aqui voltamos à Llansol e sua vocação para o exílio.
Seu exílio se deu a partir da recusa de seu marido em participar da Guerra Colonial em Angola.[2]Nesse sentido, sair de Portugal pode ser compreendido como castigo. Contudo, um sentimento de libertação a partir do exílio acompanha a autora. E nesse desejo de exilar-se pode-se vislumbrar também o desejo por uma nova biopolítica. Nela, as relações de descendência não seriam sanguíneas ou parentais, o desterro seria lugar de invenção e as fronteiras se implodiriam proporcionando a sobreposição de lugares (topos) antes separados por quilômetros.
A partir do pensamento de Agamben sobre o exílio, o argentino Raul Antelo traça uma reflexão sobre a importância de repensarmos o significado da ideia de fronteira no estudo da vida do homem na modernidade. Como vimos, para Agamben, o desterrado é aquele que já não se sabe fora ou dentro da lei, e isso o coloca, para Antelo, na situação de habitante do “confim da própria vida” (ANTELO, p. 10).
A fim de esmiuçar a ideia de confim, importante aqui para adensar as questões implicadas em exílio e território, Antelo recorre a outro filósofo italiano, Massino Cacciari, que recupera a noção de fronteira a partir desta nova concepção. O confim iluminaria o duplo sentido de fronteira: seria tanto o limite que define um território, o traçado que lhe dá forma e por onde toca seus avizinhados; quanto a soleira por onde se penetra esse território, sua entrada, lugar de atravessamento:  

 A linha (lyra) que abraça em si a cidade deve ser tão bem fixada, deve representar um finistão forte, para condenar aquele que venha a se e-liminadoao de-lírio. Delira aquele que não reconhece o confim ou quem não pode ser acolhido por ele. Mas o confim nunca é uma fronteirarígida. Não somente porque a cidade deve crescer, mas porque não existe limite que não seja “quebrado” por limina, e não existe confim que não seja “contato”, que não estabeleça também uma ad-finitas. O confim foge, em suma, de toda uma tentativa de determiná-lo univocamente, de “confiná-lo” em um significado (ANTELO, 2008, p. 13). 

É o confim de um lugar que o constitui. O que leva a crer que um lugar insiste no seu próprio confim para determinar-se. Há aí, portanto, um paradoxo escatológico: seu (com)fim é o que lhe anuncia. A esse paradoxo podemos somar as contradições que o desterrado simboliza para a biopolítica contemporânea, como vimos em Agamben. E Llansol, ao debruçar-se sobre o exílio, ao investigar sua importância para um projeto de escrita que ultrapasse os limites que condenam e aprisionam a língua, acolhe essas contradições e paradoxos. Continuando a leitura de “A vocação do exílio”, iluminamos esse acolhimento da autora as fronteiras e travessias:

Quem parte daqui? Quem regressa?
Nas entrelinhas
a vocação do exílio.
Erro, no interior desta cidade moderna, à procura da partida. Avião que sobrevoe os sistemas políticos e os Estados, que aniquile de vez as fronteiras e territórios. Os monstros já não vêm do fim da terra, vivem connosco em efígie de homens, devoram animais e plantas, e homens-estrelas; e mantêm-se como eram, com o mesmo peso e estatura. São jornais e automóveis, supermercados e árvores fingidas, falsos rostos e restos. Recrio nosso amplo mundo aquático, com flora, Prunus Tribola e nomes. Em vão, nosso rio. Vai perdida a suavidade da linguagem. Vai perdida a suave invenção da linguagem (2009, pp. 159-62).  

O movimento em busca dessa nova biopolítica que Llansol parece ensaiar é um movimento de errância. Ela erra a procura, não há um lugar a se chegar, não há uma meta, mas há a busca pela partida em si mesma. Busca-se então algo que sobrevoe os Estados-nação aniquilando suas fronteiras – ou seja, como vimos, aniquilando aquilo que por excelência os define. O território nacional que, a princípio, só pode se definir pelos limites que o contêm, é aniquilado. Aniquilar um país, qualquer país, ou melhor, aniquilar uma ideia de país seria então implodir as fronteiras, desmantelar o território de sua soberania. Sobrevoá-lo como quem, não pertencendo àquele território, o contempla.
Nesse fragmento podemos ver também que a condição de exílio que interessa a Llansol não é meramente corpórea. Em sua errância, o que vai perdida é a suavidade da linguagem. A nova biopolítica que ela ensaia é indissolúvel também de uma bioestética – na qual a literatura passa a ser território, com tudo o que isso implica (fronteiras, confrontos, confins). Três anos depois dos trechos destacados, escreve Llansol:

Destituo-me da literatura e passo para a margem da língua; eu creio que Portugal é um território de viagem, estelado, ou com a configuração das estrelas, pelos itinerários dos portugueses, fugitivos, judeus, comerciantes, emigrantes, ou navegadores; tal é a árvore genealógica desenhada à margem da literatura portuguesa. Os temas, circunscritos ao país despido das suas rotas de viagem, são temas carcerais que revelam a mediocridade das relações de sociedade, em geral, e o desenvolvimento normativo de uma literatura; diferente, é a interrompida linha de continuidade das memórias, enterradas nas areias de um mapa celeste; quase escondido da literatura vigente, teme surgir um campo inundado da língua em que, conhecer-se através dela, faz parte dos amores íntimos. [...] me sentei no banco verde do jardim, junto de Prunus Tribola, a reflectir que me deveria perder da literatura para contar de que maneira atravessei a língua, desejando salvar-me através dela. (1998, pp. 10-11) 

Para a autora, à margem da literatura portuguesa estão reunidos em uma mesma árvore genealógica toda espécie de desterrados: “fugitivos, judeus, comerciantes, emigrantes, ou navegadores”. Ao seu centro, contudo, o desenvolvimento de uma literatura normativa se dá por meio do incessante reaparecimento de temas circunscritos ao país – geográfica, cultural e espiritualmente. Há o enrijecimento da literatura em formas fixas: o uso maior da língua coincide com a sua redução a um código que já não permite a “suave invenção”. Diferente disso, uma linha interrompida desenha a continuidade das memórias – sempre tão avessas a qualquer organização cronológica do pensamento –, forma um mapa não cartográfico, mas celeste, e marca a invenção de um novo lugar possível.
E se recorremos à noção de campo ampliado – frequente em alguma teoria literária atual, principalmente a partir de Marjorie Perloff – ou à própria ideia de desterritorialização deleuziana,[3]encontramos na imagem do exílio uma expressão de invenção, respiro e resistência às forças que, erguendo normas homogeneizantes e excludentes, tornam uma língua majoritária. Quando uma literatura se fecha em seu território – como uma nação que, seja por despotismo ou estado de exceção, estabelece fronteiras intransponíveis, limites enrijecidos, ou seja, atua sobre a liberdade daqueles que ali habitam – esse território já não é senão cárcere. Quando não há viagem, transposição, atravessamento, os temas de uma literatura são temas carcerários.
E é dessa literatura que Llansol se destitui: de uma literatura homogênea e homogeneizante, totalitária, normativa, fechada em seu próprio território de modo a não reconhecer seus confins enquanto lugar de atravessamento e criatividade. Aqui, destituir-se da literatura portuguesa aparece como um abandono das constantes desse código e do dever de qualquer pertença as suas hierarquias.
Llansol atravessaa língua. E na experiência da língua, um novo exílio se dá, desta vez político e estético. Com Maria Lucia Wiltshire, em “O texto-exílio de Maria Gabriela Llansol”, entendemos que seu desterro não é só geográfico, mas passa a ser também projeto literário:

Paradoxalmente a distância da terra natal provocou em Llansol o consolo de que “não possuía do passado senão uma língua  /  de que nada nem ninguém,                     conseguiriam separar-[lhe].” (“LisboaLeipzig” 126). O seu ponto firme era essa língua, o seu real, o nó de certeza do seu corpo com o mundo, aquela âncora que lhe permitiu criar o livro inaugural do seu projeto, “sem país em parte alguma, salvo no vazio” em que se deu a uma comum idade: “Comum idadereal por imaginária, e imaginária por verdadeira.”(“Finita” 53).  O Livro das Comunidades surge desta forte experiência de distanciamento da pátria, tornando-se um livro iniciático – um “livro-fonte” (“Finita”, 181) – que realiza uma simbiose entre exílio geográfico e textual e preenche o seu desejo de “uma escrita viva que pudesse tomar por um encontro”. (“Finita”182) (2015, p. 4).

Se voltarmos à epígrafe deste ensaio a partir da citação de Wiltshire, percebemos que é por meio da experiência da língua que a Bélgica se torna território português. Porque lá, no exílio, é o português, língua materna, que persiste. E escrever de lá se configura como possibilidade de deslocar essa língua, afastá-la do que é dominante, do seu uso corrente, tocar sem confim. O português é sua âncora numa paisagem que já não o contempla: “Aqui, um único sentimento: escrevo em português, estando repousada, fundada na língua. Na língua descritiva, sem metáfora, não musical. Na língua não toante, de que me recordo à distância, reconstituída pelo fato de ter de lembrar-me”, diz Llansol (2009, p. 159). Um projeto literário vai configurando-se: escavar uma outra língua dentro da língua, criar linhas de fuga do enrijecido, passar “para a margem da língua”.
Sobre o que pode significar a língua materna para aquele que escreve, retorno a Agamben, agora em outro texto, apresentado como “Ideia de Único”. Nele, o filósofo parte de uma resposta do poeta Paul Celan sobre a questão do bilinguismo. Questionado sobre escrever em alemão – língua dos assassinos de seus pais, mortos em um campo nazi – e não em romeno, Celan responde: “Só na língua materna se pode dizer a verdade. O poeta mente se usa uma língua estrangeira”. Agamben então se pergunta qual experiência da língua estava em causa para o poeta e conclui: 

É, de fato, uma experiência da língua que pressupõe desde sempre palavras – com as quais falamos, como se tivéssemos desde sempre palavras para a palavra, como se tivéssemos desde sempre uma língua mesmo antes de a ter (a língua que falamos então já não é única, mas sempre dupla, tripla, presa na série infinita das metalinguagens); e há uma experiência na qual o homem, ao contrário, está absolutamente sem palavras diante da linguagem. A língua para a qual não temos palavras, que não finge, como a língua gramatical, ser mesmo antes de ser, mas que “é única e primeira em toda mente”, é a nossa língua, ou seja a língua da poesia. (2013a, p. 40) 

E me parece que poderia estar também nesse lugar a experiência de Llansol com a língua portuguesa. “Fundada na língua”, ela diz. Como se essa língua lhe fosse anterior, no sentido de que, mesmo antes de ter a língua portuguesa, é a língua portuguesa que ela necessariamente tem. E ela desloca essa língua simplesmente porque não poderia ser diferente. Seu corpo exilado leva consigo a língua que o impregna. O corp`a screverda autora transforma a experiência do exílio necessariamente em experiência literária.
Também Maria Carolina Fenati, em “Exílio, língua, escrita” elabora leitura a respeito do texto-exílio de Llansol: 

De diversos modos, Llansol relaciona a experiência do exílio a um deslocamento que aos poucos opera na língua portuguesa, como se a decisão de afastar-se do território onde ela era falada fosse simultânea ao desejo de criar outras formas de a articular (2016, p. 149) 

Se a experiência do exílio é simbiótica ao desejo de criar outras formas de articular a língua, nos resta a questão: que outras formas são essas? Mas tratar de questões estritamente literárias a partir da obra de Llansol não é tarefa fácil – e eu arriscaria até mesmo dizer que é um equívoco.
Primeiro porque, como vimos, a autora é avessa à literatura enquanto código, e isso a faz escapar de um discurso sobre hibridismo de gêneros ou experimentalismo formal – afinal, pensar a inespecificidade de seus escritos é partir de um pressuposto de especificidade que não lhe condiz. Antes, como vimos, a ela interessa fugir desses códigos: “ela simplesmente ia, procurava ir à fonte da escrita, acolhendo aí a força que é anterior a qualquer género estabilizado” (MAIA, p. 53).
Depois, porque a profusão de textos assume diversos (anti)formatos, e o que apressadamente seria enquadrado como prosa – para depois se misturar a outros gêneros em uma análise mais “formalista”, poderíamos dizer – é quebrado já em sua gênese com procedimentos diversos: o verso, o sublinhado que nada sublinha, o branco entre as linhas e no interior das frases, os comentários desconexos, as cartas, listas, a descontinuidade geral da estrutura narrativa e, principalmente, na própria origem das obras que são escritas em blocos erráticos em meio às anotações mais ou menos cotidianas. São quebras incessantes, escapando à lógica sequencial tão comum aos séculos anteriores e ao espírito totalitário de seu tempo.
Sua obra, na verdade, é composta por fragmentos – ou melhor: seu livro único: “todos esses textos integram o texto do meu livro. Livro único, que aparece publicado em lugares, datas, textos ou volumes diferentes” (2009, p. 115)Não o fragmento enquanto gênero literário, nem como efeito estetizante e estetizado. Mas o fragmento enquanto escapatória de qualquer gênero, na busca de uma escrita em sua origem, anterior às formatações. O fragmentário de seus textos deixa ver, antes, um desejo de incorporar o mundo, tudo aquilo que constitui a substância dos dias, pela escrita. Por isso, a dificuldade de lidar com seus escritos: ao mesmo tempo em que se configuram como híbridos, fogem radicalmente dessa e de qualquer conformação. O monstro. Surge a necessidade de tratar sua obra não a partir doslimites de gêneros, mas noslimites, reconhecendo que ela se constrói no próprio confim da língua, na sua margem, ou seja: em um lugar anterior e posterior aos territórios definidos e aos gêneros formatados.
Llansol termina livro das comunidades – que escreveu junto ao Livro das horas I, do qual mais falei aqui – apresentando um novo ser que seria formado por Nietzsche, João da Cruz, e Thomas Müntzer, não personagens do livro, mas figuras, como ela os chamava. E inicia o livro seguinte, A restante vida, exatamente com: “o novo ser era um monstro”. A caixa baixa no início de frase deixa claro que A restante vidaé ainda Olivro das comunidades. Ela os une textualmente enquanto os separa em objetos distintos, dois objetos-livro. Também sua obra é o monstro: “Pai monstruoso era o monstro, de olhos não importa onde, plurifacetados de recordações, de predições do futuro e de espelhos abertos” (2009, p. 64). Inclassificável união de partes que não ambicionam constituir nenhuma totalidade.  
Há uma constante tensão entre unidade e fragmento. E talvez essa tensão seja onde mais vislumbramos o trabalho nos confins da língua. O caso d’O livro das comunidades é apenas um exemplo. Essa tensão está muito mais evidente, na verdade, em sua produção de uma escrita diarística. Os cadernos e diários que, dentro dos preceitos tradicionais da literatura normativa, são considerados escritas menores, compõe grande parte do seu livro único. Mais precisamente, é a partir deles que praticamente toda a obra é composta. Como vemos na introdução de João Barrento e Maria Etelvina Santos ao caderno que foi publicado sob o nome de Livro das horas I, antes da publicação, foram suprimidas dele as passagens dos “romances” que a autora escrevia na época. É no caderno, em meio às listas de afazeres e ao relato das idas a Ferme Jacob e ao café, que estão os fragmentos que compõem O livro das comunidadesA restante vida. Ela chega a dizer que “todo romance é feito de fragmentos a que o autor apaga a data” (2011b), denunciando nessa presença ausente da dataa importância do diário para a escrita dos romances.
No prólogo do Livro das Horas I, ao qual ela chama “A raiz de qualquer livro” – o que já indica que no diário está a gênese de sua escrita – encontramos a seguinte reflexão da autora:  

________ a primeira imagem do Diário não é para mim o repouso na vida quotidiana, mas uma constelação de imagens, caminhando todas as constelações umas sobre as outras. Qualquer aprendiz imagético, quando sobe ao meu quarto e atravessa o meu escritório, tem o sentimento de que “um belo lixo de imagens se criou aqui”. Se for menos inocente dirá: “que belo luxo de imagens”. Eu diria: aqui está a raiz de qualquer livro [...]. Este lugar – metade abrigo humano, metade cheiro multicor da floresta – tem uma natureza híbrida que o faz ser o meu horto preferido de estudo __________ estudo? escrevo? a semelhança é tão grande que não a distingo (2009, pp. 19-20)

Com o “O diário íntimo e a narrativa”, oitavo capítulo do Livro por virde Maurice Blanchot, entendemos que o diário íntimo, apesar de livre de forma – “pensamentos, sonhos, ficções, comentários de si mesmos, acontecimentos importantes, insignificantes, tudo lhe convém” (2005, p. 270) –, está necessariamente preso ao calendário. E esse enquadramento no passar dos dias enraíza o diário no cotidiano, no círculo da vida. Podemos concluir que essa vinculação com a data implica uma escrita necessariamente aberta ao tempo. E quando escrever se confunde com estudar, como nos diz Llansol, se dá uma escrita aberta não só ao passar dos dias, mas a outros tempos e lugares. Escrever/estudar também integra a ordem dos dias: “Hoje acontecia que, mal passava a ferro, mal lavava os pés (qualquer trabalho) tinha que pegar com a mão livre a caneta, deixar sempre outra mão livre para escrever” (2009, p. 144). Dessa forma, a abertura ao tempo de seus diários foge do enrijecimento da ordenação cronológica de um relato corriqueiro porque, afinal, os próprios dias são dedicados ao conhecimento e à escrita.
O crítico português Tomás Maia, já citado anteriormente, em nota sobre Llansol, diz: 

O tempo é o que perpetuamente interrompe e reinicia a escrita[da autora]. Na palavra tempus, de resto, há a ideia de “fracção”, e esta provém, tal como “fragmento”, do verbo frangere– que significa quebrar. O fragmento é o recomeço imparável do tempo, e tal é a razão pela qual cadafragmento se encontra sempre no limiar de nada(2015, p. 52). 

O discurso prosaico é tradicionalmente aquele que se caracteriza por uma potencial sequencialidade infinita. É um discurso sem rupturas, contínuo no tempo. Principalmente quando está no modelo narrativo-extensivo. A ele se opõe o discurso poético, e essa oposição, inclusive, o ajuda a definir. Talvez o que mais precisamente caracterize o discurso poético seja a quebra do verso – poderíamos dizer, o enjambement.[4]Ao romper o continuumda frase, a poesia impõe um limite para aquela sequencialidade potencialmente infinita da prosa. Como se ao ler um poema percebêssemos a cada fim de verso um abismo. E é precisamente isso que sugere o enjambement, o “mergulho de cabeça sobre o abismo do sentido” (AGAMBEN, 2013a, p. 31). Esse abismo é o confim da poesia: a define e a limita, é por onde atravessamos seu sentido e por onde ela se abre a diferentes sentidos.
E não são as diversas quebras do texto de Llansol também interrupções da sequencialidade infinita do discurso prosaico? Se recorremos à proximidade ensaiada por Maia entre o tempo fracionado (em datas, dias, meses etc.) e o discurso fracionado, e colocarmos esse paralelo entre o fragmento e o verso em evidência, vemos então que as constantes interrupções que Llansol opera no texto criam uma infinidade de abismos na língua. A cada quebra, um novo fim e um novo começo se estabelecem. E um somatório de fragmentos é também um somatório de fins e começos, de limites. “Tantas formas sobre o que meditar. Tantos símbolos. Tantas significações surgidas dos limites do tempo”, nos diz Llansol (2009, p. 164).
Mas esse tempo quebrado não é apenas o tempo cronológico dividido em dias ou séculos, é também o tempo da memória e do pensamento: “O tempo tomou-nos e continuamos a desconhecê-lo exactamente premeditado. Já não há medidas de tempo, mas espaço a transpor em unidades de pensamento, ou seja, de nossas visões sacudidas pela espera [...] Cem anos é um rápido passo, só a mudança de perspectiva é temerosa” (2009, p. 145). A quebra da sequencialidade do tempo se dá por imagens, cenas fulgor, que cintilam de sentido. De forma análoga, também o texto não se constrói por uma sucessão de acontecimentos: “Sua história, de João da Cruz, não é uma sucessão de acontecimentos, é uma condensação de palavras elevada de que nada desaparece, [que] seja no mesmo instante. Ser no mesmo instante, nada desaparecendo nos séculos dos séculos” (idem, p. 145).
As lacunas abertas no texto são também os confins da linguagem que Llansol investiga. Portas que ela atravessa: 

Abandono este dia, mas estou nele. Levo-o comigo. Tudo são associações, entradas por outras portas para outras salas, na porta seguinte está marcado o detalhe da porta anterior [...] Costura e escrita, Ana de Peñalosa e o monstro, Jodoine e Lisboa, Lovaina ao meio, Nietzsche e filhos, Hadewijch de perdida memória e nenhuma referênia” (2009, p. 143). 

Atravessar esses lugares, penetrá-los para depois abandoná-los e ir a outros territórios. Uma reunião errática de referências que se espalham no texto. Assim, Llansol habita os confins da língua. E, através da escrita, cria um novo território, porque a geografia do mundo já não lhe é suficiente: “A meio da porta situei uma vela que guia o meu olhar e espírito. Ouço o coro dos peregrinos. Se transpusesse a porta, estaria no jardim, e aberta a porta estaria na Bélgica, na cidade Jodoigne. É impossível, não bate certo esta geografia do mundo” (idem, p.136).
O exílio geográfico transmutado em texto-exílio ganha forma em fragmentos. Esses fragmentos, por sua vez, estabelecem os infinitos confins da sua escrita: lugares por onde entrar, portas a se ultrapassar; linhas de leitura e demarcações de territórios de estudo e escrita. Por fim, esse esforço llansoliano cria uma nova geografia pro mundo e uma nova maneira de habitar esse mundo. Sobrevoa-se Estados-nação e a vida é possível em errância, fugindo do estabelecido estéril.
Também assim, sem pretensões conclusivas, mas aberta a um exercício de errância, termino essa breve tentativa de ler Llansol a partir da noção de confim ainda com uma citação da autora: “Vida e morte de Augusto e Gabriela, desejo de, quando esta minha forma humana nos deixar, a mim e ao Augusto, perspectivar nossa época nos confins de um livro. Admito que possa vir a encontrar-me numa planta, por isso queria deixar o sinal da passagem por esse tempo de homem” (2009, p.157). 

 

Referências:

AGAMBEN, Giorgio. Ideia de prosa. Trad. João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013a.
AGAMBEN, Giorgio. “Políticas do exílio”. In: DANNER, Leno Francisco e DANNER, Fernando (orgs.). Temas da filosofia política contemporânea. Trad. Marcus Vinícius Xavier de Oliveira. Porto Alegre: Editora Fi, 2013b, pp. 33-51.
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2014 (Estado de sítio).
ANTELO, Raul. “Lindes, limites, limiares, Boletim de Pesquisa NELIC, Florianópolis, Edição Especial v.1, 2008. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/nelic/article/view/1984-784x.2008nesp1p4/8117Último acesso: 20  ago. 2018.
BLANCHOT, Maurice. “O diário íntimo e a narrativa”. In: ________. O livro por vir. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 270-278.
FENATI, Maria Carolina. “Exílio, língua, escrita”. In: BARRENTO, João (org.). A vocação do exílio. Lisboa: Maripoza Azual, 2016, pp. 145-167.
LLANSOL, Maria Gabriela. A restante vida. Lisboa: Relógio D`Água Editores, 2001.
LLANSOL, Maria Gabriela. Finita – Diário II. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011a.
LLANSOL, Maria Gabriela. Finita – Diário II. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011b.
LLANSOL, Maria Gabriela. Um falcão no punho. Lisboa: Relógio D`Água Editores, 1998.
LLANSOL, Maria Gabriela. Uma data em cada mão – O livro das Horas I. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009.
MAIA, Tomás. “O fragmento completo (nota sobre Maria Gabriela Llansol)”. In: BARRENTO, João (org.). O império dos Fragmentos: Llansol e a exigência fragmentária. Lisboa: Maripoza Azual, 2015, pp. 47-57.
MATEUS, Isabel Cristina. “Fragmentos e outros lugares improváveis: os Diários de M. G. Llansol”. In: BARRENTO, João (org.). O império dos Fragmentos: Llansol e a exigência fragmentária. Lisboa: Maripoza Azual, 2015, pp. 59-73.
OLIVEIRA, Maria Lúcia Wiltshire de. “O texto-exílio de Maria Gabriela Llansol”, InterDISCIPLINARY Journal of Portuguese Diaspora Studies, Anderson, v. 4, n. 2, 2015. Disponível em: https://portuguese-diaspora-studies.com/index.php/ijpds/article/view/197. Último acesso em 20 ago. 2018.
PERLOFF, Marjorie. “‘Literature’ in the Expanded Field”. In: BENHEIMER, Charles (org.), Comparative literature in the age of multiculturalism. Baltimore and Londom: The John Hopkins University Press, 1995. 



[1]Para este pequeno escrito, ao tratar da figura do exílio na obra de Maria Gabriela Llansol, me concentrarei principalmente no projeto de escrita da Geografia dos Rebeldes (trilogia composta por O livro das comunidadesA restante vidaNa casa de julho e agosto), que acompanha ainda diários (Um falcão no punhoFinita eInquérito às quatro confidências) e cadernos escritos concomitantemente. Entre estes cadernos está, inclusive, o livro de onde destaquei “A vocação para o exílio” e ao qual mais me atentarei, Uma data em cada mão – Livro das Horas.

[2]A Guerra Colonial em Angola, ou Guerra de Independência de Angola, foi um conflito armado entre as forças organizadas do movimento de libertação – a Frente Nacional de Libertação de Angola e o Movimento Popular de Libertação de Angola – e as forças armadas portuguesas. Começou em 1961 e teve seu fim com a Revolução dos Cravos, em 1974, e a consequente independência do território angolano. 

[3]Para compreender melhor uma aproximação entre a teoria sobre desterritorialização de Deleuze a escrita de Llansol, ver: “O texto-exílio de Maria Gabriela Llansol”, de Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira.  

[4]Por definição, o enjambement só se realiza quando há uma oposição entre o limite métrico e o limite sintático. Mas nas quebras de verso em que essa oposição não se encontra, fala-se que há enjambement zero. Por isso, aqui, preferi travar uma equivalência superficial entre a quebra do verso, ou seja, a interrupção da continuidade extensivo-narrativa do discurso, e o enjambement.