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ela agora está cercada de antes

por Maria Caú


 

Ela agora está cercada de antes.
E todos os tacos soltos do chão da sala,
quebra-cabeças confusos,
e também os barulhos
entre a geladeira e as portas fora dos gonzos nos armários,
além da gritaria no convés do corredor,
e mesmo quando se abre a janela a deixar ver tudo que se mostra
não há novidade alguma.

Tudo se prendeu de passado
e agora não se presta mais a navegar adiante.

Quem mandou não ter ela mesma plantado o manjericão no vaso,
comprado os móveis,
escolhido a cidade, que seria outra,
selecionado os discos, que seriam muitos,
em vez de acordar sempre na casa que não era sua,
comer da louça que estava já,
regar o manjericão que não crescia mais
para viver esta vida sem regresso,
círculo perfeito em que a cobra morde o rabo,
que mesmo que desfeita e remontada
com peças de Lego vermelhas e azuis,
ainda seria feita de pedaços de autoria alheia,
como o eram a chave
a fechadura
o pote de manteiga
os amigos que tinham sorrisos tão calorosos como a luz branca na cortina,
e a cortina,
o porteiro, a portaria,
o professor da faculdade e o caminho até ela,
as persianas, as lupas e os relógios,
e os outros objetos de ver e medir.

Mesmo a dureza não era sua,
até o choro enxugado em panos dele.

Em pé na beirada da sala ela esperava a chegada.
Atrasara-se, com certeza,
mas viria.

Ela agora estava cercada de antes,
inventariando esquecimentos e calafrios,
afiando rotas de fuga,
colocando a chave na fechadura
e abrindo o pote de manteiga
e saudando o porteiro na portaria
e marcando o caminho das persianas na cortina
e testando o quebra-cabeças dos tacos soltos que media os meses de arrastar cadeiras e
ouvir música.

Agora, ela ainda cercada de música,
abre a janela a deixar ver o que se mostra,
senta-se no chão atrás de si:
não há novidade alguma.