no princípio, era o júbilo e o terror.
não. no princípio era só o terror. em setembro de 2019, à convite de julya tavares, o corpo editorial que aqui insiste, formado também por augusto brandão e carla oliveira, se reuniu pela primeira vez para pensar a edição 9 da revista garupa. o lançamento do último número foi em abril de 2018, um mês depois do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, na rua joaquim palhares, no bairro do estácio, na cidade do rio de janeiro, a 4,5 km de onde estamos agora. não esquecemos quem morreu, mas ainda queremos saber quem mandou o vizinho do presidente matar.
morte vela sentinela.
em setembro de 2019, o corpo editorial da edição 9 da revista garupa se reuniu em uma casa de santa teresa para conjurar possibilidades de júbilo. não.longe, longe ouço essa voz. juntxs, conjuramos possibilidades de suspender o céu: o disparador desta edição foi a frase toda a literatura é, ao mesmo tempo, júbilo e terror,da teórica portuguesa silvina rodrigues lopes, mas quem zelou por nossa travessia foram ailton krenak e suas ideias para adiar o fim do mundo.
suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas existencial. é enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir. se existe uma ânsia por consumir a natureza existe também uma por consumir subjetividades. [...] já que a natureza está sendo assaltada de uma maneira tão indefensável, vamos pelo menos ser capazes de manter nossas poéticas sobre a existência.[...] o fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar nosso roteiro de vida. ter diversidade, não isso de uma humanidade como um protocolo. porque isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos.
para compartilhar esse espaço conosco, convidamos aline rocha, danielle magalhães e elilson. em sonha pra não dormir, aline e dani imaginam a troca de correspondências como conversa íntima e conflituosa; o rio de janeiro e suas relações com o júbilo e o terror; a recusa como gesto. em escrita de vagão, elilson persegue pessoas pelo metrô do rio de janeiro e escreve com o corpo movido pelo desejo de traduzir percursos.
seu rosto brilha em reza, brilha em faca e flor
histórias vem me contar
fazer uma revista por chamada aberta é deixar o rosto brilhar à estranheza do desconhecido. minha fera, quem poderá olhar-te dentro dos olhos?depois de três meses lendo os 488 e-mails que recebemos, vimos a proposição da silvina ser devorada. ou melhor, vimos que toda a literatura é, ao mesmo tempo, júbilo e terror era uma aposta a ser dobrada, torcida, revirada: um convite à insubmissão. depois de muitas leituras e releituras, a juliana travassos entrou na roda para nos ajudar a dar corpo a essa insubmissão, colaborando na etapa final de seleção dos materiais e de preparação da revista.
morte vela sentinela
sentinela: soldado armado que guarda um posto. não. gente que vela sobre algo.
espera. antes precisamos falar do canto.
a julya anda muito interessada nos cantos de trabalho. esses cantos – dos pisadores de cacau, das ganhadeiras do abaeté, dos cocos de roda – atravessam os fazeres de gerações de trabalhadores sob uma variedade de tons, alturas, velocidades, ritmando o esforço laboral exigido. criados a partir da necessidade de diminuir o peso do trabalho braçal, forjam uma economia orientada não para a circulação do produto, mas sim do resíduo. como aquilo que excede a submissão, a coletividade do canto ensaia formas de rebeldia.
veja bem, meu patrão
como pode ser bom
você trabalharia no sol
e eu tomando banho de mar
[...]
não lembro de canseira maior
nem tudo é o mesmo suor
sentinela: trabalhadorx que canta xs mortxs. as cantigas de sentinela, também chamadas inselências, são cantos funerários que ajudam a abrir caminho para xs mortxs de cidades que não têm padres. mas, por atravessarem dia e noite, acabam funcionando também como um adiamento da morte. o nome da edição 9 da revista garupa vem das cantigas de sentinela. enquanto escrevemos este editorial, ouvimos a voz de milton nascimento em suas worksongs. cantar o suor. cantar a vigília.
nós também estamos velando por nossas mortes. e assim como nos ritos de sentinela, os materiais que compõem esta edição nos mostraram que a tarefa da ordem do dia é, ao mesmo tempo, a de vigiar e adiar o fim do mundo.
nessa vigília, cantam conosco
talita gonçalves de almeida, rayi kena, thadeu santos, pedro lago, ana elisa lidizia, luís matheus brito, guido arosa, rodolfo teixeiralves, rita isadora pessoa, julya tavares
morte vela sentinela
danna dantas, bartira dias, ana carolina assis, júlia vita, vitor felix, arthur lungov, thassio ferreira, christine gryschek, lucas van hombeeck
seu rosto brilha em reza, brilha em faca e flor
victor vieira, larissa vaz, matheusa de araujo, nathalia silveira, jessica stori, alice garambone, formiga, giulia benincasa, inês nin, priscilla campos.
clareira na noite, na noite
heyk pimenta, carlos orfeu, lorenzo ganzo galarça, pedro cassel, camillo josé, patrícia lino, júlia manacorda, camila de moura, julia raiz
vou viver cantando o dia tão quente que faz
dessa vez, as ilustrações da revista ficaram a cargo da artista visual joana lavôr. enquanto escrevemos este editorial, imaginamos que os desenhos da joana sonharam a edição 9.
há um tempo desenvolvo um caminho diário-narrativa-imagem para pescar signos, produzir desenhos e levá-los de volta para o sonho. usar o sonho. por isso quis muito esse procedimento para a nona edição da garupa. foi bonito porque o convite chegou pela julya e pelo augusto, com quem já conversei muito sobre a carne e as situações de mar que vi em sonhos e trouxe para a revista. comecei por cores terrosas olhando as cenas de barro e chuva que sempre surgem, depois trouxe para os desenhos os touros, os peixes e as mãos que tinha contado para julya e a tríade de mares furtivos que o augusto me ensinou a ver como deslocamento, e não exclusivamente como morte. os primeiros nankins pretos e azuis atravessaram o fim do ano e trouxeram outros sonhos muito diferentes. foi quando o vermelho e o coral entraram nas ilustrações. quero entender como as imagens dialogam com os textos da edição e espero que o caminho que construo nos desenhos sirva também para quem lê. revirar o terror e as intensidades via imagens; revisitá-las e usar o sonho, justo agora.
justo agora.