efeito terrível de uma canção
1.
Ritmo
forma complexa de alegria
potência do corpo
algo vital que se acende
transtorno do
pensamento que se dobra
aos afetos.
ritmo (qualquer ritmo:
do texto, da música, da
minha própria frequência cardíaca quase sempre apressada)
cadência e movimento
compreendido antes pelos sentidos
idiorritmia que permite só então
acessar significados descobrir-se
de repente andando no mesmo passo com alguém recém-conhecido linhas paralelas em respiração próxima e comunicável
atravessado por uma presença
um corpo, uma imagem, um texto?
num processo de afinação
2.
Canção
afirmação tempestuosa de um amor
périplo pela cidade de São Paulo
melodia (que) ora se insinua em meio às palavras
ora se perde na
cadência rápida do declamatório
modulação da voz e do canto
presença da poesia
discurso
amoroso tenso torrencial
(eletricidade e
desejo)
3.
Descompasso
eletricidade e desejo
profusão de rimas internas
repetições encontros vocálicos espelhamentos
sequência de
versos inundados
por proparoxítonas, palavras de corpo alongado
e grave
4.
Trovejar
espontaneidade e violência
acontecimento (no sentido pleno da palavra)
que escapa ao controle e
ao cálculo
oferta e acaso
símile sensível
imagem-síntese do rito
vozes velocidades tonalidades
reverência insubmissão doçura
eu atravessava os dias de revelação e caos da exposição sem limites à incerteza, algo como um encantamento profundo quedava sempre
minha cabeça trovoa
anunciava o som insuportável, a
presença densa do outro, dos
abalos que pode provocar.
5.
Enumeração
modulação hábil da voz: às vezes
as lembranças amenas de um amor
e rápido o atropelo da dicção
(quase) grito
junto a ele
contraponto e complemento
outro amontoado de
substantivos
outra sequência enumerada
objetos corriqueiros
diferença contrastante entre
o sublime e o som rascante
de uma rajada de tiros cujas
palavras estilhaçam-se em sílabas
entrecortadas
de leitura interrompida
o poema mais lírico, a coisa mais lógica
6.
Passagem
(sempre reversível, não obediente
a uma sintaxe rígida)
entre trova e tempestade
isto é
entre elementos díspares que se equilibram
partir da contradição
os sujeitos
existem e se realizam
amorosamente no ponto exato em que
os contrários
(palavras
afetos
melodias
desejos) se tocam
7.
Externar-se
gesto de dispêndio de igual
demanda generosa. Amar é de fato
quando não apenas
puro impulso
narcísico – sair de si
à desmesura
de um encontro com aquilo
(aquele)
criar por sua vez
movendo
a atenção
do incerto e do espanto:
daí a estrutura discretamente metalinguística da canção
8.
História cíclica
a procura do
amante ausente
a confusão de uma
briga
o desespero do desencontro
as promessas finais
a modo de afirmação
e um recomeço
conflito imprevisível de uma história cíclica e em permanente estado de suspensão
9.
Força ambígua da obsessão
quantas vezes é preciso ouvir uma canção
espécie de impulso que
não apenas impele ao
outro mas que o quer
capturar cuidar restringir conter
amante substituível
astro em torno do qual tudo o que há de
sublime fútil violento se concentra
a insistência da audição da música traduzia a maneira como eu compreendia a lógica do encontro
muito hábil expressão
formal do afeto
feita de cenas
e sonoridades
de uma experiência que ultrapassa e recobre por inteiro
o sujeito
da escrita
e do canto
sem saída
mobilização
quase doentia a que
o afeto pode conduzir
Maria Antonieta d’Alkmin
nunca mais se deixe esquecer
onde nasce e mora todo o amor
* A partir do ensaio “Sobre trovas e tempestades – atravessar uma canção que me atravessa”, de Gustavo Silveira Ribeiro, a respeito da canção “Trovoa”, de Maurício Pereira, publicado na edição Íon (ago. 2017) da revista Garupa.
______________________________________
Sobre a autora:Eliza Caetano é autora de O caderno das inviabilidades, publicado pela editora Urutau em 2016 e semifinalista do Premio Oceanos de Literatura 2017. Tem poemas publicados também em revistas eletrônicas como Escamandro e Literatura.br.