De acordo com a lua sou barraca, ou casa, ou cabana, ou iglu, ou catedral. Às vezes me sinto como um prédio abandonado. Matéria sem sentido. Planta de projeto perdida ou molhada. Apenas um corpo de pé, sem vida nenhuma dentro. Comecei a sentir o vento gelado que corre por dentro desses prédios vazios, inacabados. Esculturas imponentes que saltam diante dos nossos olhos enquanto olhamos as montanhas da janela do ônibus. Logo nova comecei a me identificar com esses corpos abandonados na cidade. Para ir à praia, passava pelo prédio da Encol na Tijuca, que ficou muitos anos ali, vestido de cinza e muro, escondendo o lindo e íngreme morro da Formiga. Durante muito tempo, o maior carinho que recebeu foram as pichações feitas ao longo de seus andares e varandas. Cinza, preto fosco e sombras. O prédio da Encol era como um defunto que as pessoas não sabiam onde desovar pelo tamanho que tinha. Quando não quero ser percebida, me visto de concreto: não quero dizer nada, estou em construção. Vestida de concreto, não quero ser habitada. Quando ando na rua eu olho para os prédios. Já tinha horror das grades, mas essas desse material novo são ainda piores. As grades de ferro ainda eram pesadas e tinham ornamentos. Essas que todos os prédios têm, de cor bronze ou branca e vidros que deixam ver os jardins que só os porteiros cuidam, são de fazer chorar na calçada. Muitos prédios altos têm bonitos pilotis na base, para que pessoas possam passar por ali, mas ninguém passa. Porque não tem gente e porque tem grade. Pilotis com grade. Acho que é esse o meu desenho nos dias que sou prédio abandonado: baixo, mas que ninguém alcança, os olhos tampados pelas copas das árvores; de concreto e sombras que revelam o vazio; o grande pilotis que quer pessoas, mas tem grades sem ornamento na entrada. E eu prefiro ser essa escultura de concreto solitária do que ser esses prédios novos de cores claras e padronizados. De material vagabundo, e sem mensagem nenhuma que não seja de ordenamentos do espaço privado e esquecimento do espaço público. Prefiro ter a minha pele de concreto tatuada com mil mensagens em preto fosco. Prefiro o vento da solidão do que a ilusão do condomínio, a falsa vizinhança. Quando era pessoa eu gostava de invadir umas casas vazias. Pensava na vida dentro daquelas dependências: um quadro esquecido no quarto, a escolha do azulejo do banheiro e o fogão de frente para a janela que dá para um muro com uma franja de flores. Comidas gostosas devem sair de quem olha as flores enquanto cozinha. Prefiro as coisas velhas, não por nostalgia, mas por identificação. Estão desgastadas pelo tempo e resmungam. O Rio de Janeiro parece ter medo de revelar suas rugas, e contar suas histórias. Então faz plásticas urbanas, para não revelar a idade. As coisas hoje se levantam muito rápido. Do dia para a noite um monstro de 15 andares é levantado, e passa a rebater o sol de uma forma que acaba com as sombras em que o homem do jogo do bicho ficava há 20 anos, na esquina. Construções feitas para serem demolidas. Só sabemos construir sobre escombros, como quando amamos. As pessoas não querem ver mais as ruínas, porque lembram dos tempos que foram felizes. Então o homem destrói a ruína e constrói alguma coisa nova, para esquecer o que passou e demolir em seguida quando necessário. Eu não quero me demolir. Me olhando de longe, como um prédio vazio, na minha frente uma placa me sinaliza: em obras. Não é uma placa, é uma tatuagem em preto fosco no meu corpo.
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Sobre o autor:
Carlos Meijueiro de Assis – escritor e pesquisador.