SEÇÕES

duas variações sobre o tema da cidade, ou corpo-capital

por João Gabriel Pontes


duas variações sobre o tema da cidade, ou corpo-capital

















breve legenda:


i: vista da copa, zenital;
ii: vista da raiz, rasante.






i: a origem do calcanhar de aquiles



a beleza do mito repousa
em um complexo
de falsas
inconsistências,

duvidosos
triunfos
                         da ilusão,

que, apesar de calculados
milímetro a milímetro,
por vezes, mais parecem
lapsos de um bardo

                        afoito,

como essas sandálias,

que pendem
tão irresponsavelmente
dos teus pés,

                        vaga
                        criatura
                        radioativa.

revolves, reviras

                        tuas articulações

para extrair
da mandrágora
a ternura líquida
em uma revoada

                        de cotovias.

lá embaixo,

encravados no sono
do deserto,

                        os órfãos
                        do fogo
                        infestam

                        o bulevar

e conduzem
seus tristes passados

                        pela coleira,

ofertando-os à distância
entre o teu cigarro

                        & o chão aceso.

                        passados errantes,
                        cabeças errantes.

                        cabeças errantes,
                        saúvas avulsas.


ii: máscara

Ano após ano,
a máscara do macaco
revela o macaco.

Matsuo Bashō

é samba de dar em doido
quando marcho pela avenida

presidente vargas

em direção à candelária e fito
procissões de pernas
apoteóticas, confusas, espásticas,
cobertas por vestidos que refletem
precipícios
no cetim-cor-de-nada;

e me assalta o toque de teus dedos
contra os ruídos-gosto-de-cravo,

ruídos meus,

mas, no fim das contas, no momento
em que a décima badalada me rompe,

a décima primeira me traga
e a décima segunda me fertiliza
e a décima terceira me espalha,

tudo se funde em um retrato anônimo
de gabrielle d’estrées e da duquesa de villars,
florestas nuas apenas da cintura para cima,

ou completamente nuas,
alternativa que não podemos
descartar,

pois são curiosas
as molduras:
exibem um parágrafo, ocultam uma vírgula,
janelas metade-metade sugestivas;

e são sempre novos dedos
& novos ruídos em seios

luzidios,

como se a vontade da criança
adquirisse o formato de um sol carnívoro e assomasse
no horizonte labiríntico e sarapintado
de concreto
da cidade onde vivo
para acariciar o meu rosto,

metade nu, outra metade também.

 

_______________________________________
Sobre o autor:

João Gabriel Madeira Pontes é um poeta carioca nascido em 1992. Teve seu trabalho publicado nas revistas Modo de Usar & Co., Escamandro, Pessoa, Garupa, Mallarmargens, Gueto, Diversos Afins, nas portuguesas InComunidade e Enfermaria 6, e na norte-americana DUSIE. É autor de Indiscrição (Kazuá, 2016), de Entropias de eixo e beira (plaquete digital, Enfermaria 6, 2017), Entropias de eixo e beira", em versão de jogo (caju, 2018) e de Saúvas avulsas (Garupa, no prelo).