Uma analogia. Uma analogia absurda. Pois bem, uma tão absurda que me permita falar de arte; melhor seria nada dizer e apenas ver; ou escutar, ou provar; mas nem mesmo assim ficaria sem as expressões verbais dadas sem palavras. E assim será, sendo o que é: conto e conto com alguém, ou seja, nada e ninguém como a alegoria de lá ou aqui; outra coisa; arte.
Uma analogia absurda. Uma que demarque, com a absurdidade que lhe compete, uma mudança de ar, com a qual se respire o anseio de diferenciar a estranheza da estranheza e que, a distinção, convoque o singular para estar ali, e levante, paradoxalmente, o liberto e o estranho que é o estar só. Só é dizer, ou fazer ver, porém, é fora explicar, que de nada serve ao singular, e afirmar menos fora mentir, até porque todo objeto de arte fala por si, com um jeito que lhe é próprio e naquela linguagem em que é pensada no feito.
Uma analogia absurda apoia-se em seu próprio domínio e convicção, por explicitar a própria carência dos seus fundamentos aqui. Assim, com chegadas, partidas e abandonos da vinda de uma presença, exponho a analogia absurda que toma a Porte-fenêtre à Collioure, 1914, de Matisse, e a redescobre na fantasia metafórica com alguém, ou ninguém, por perto: ali está a encadernação da pintura.
Devo, contudo, advertir que não cabe aqui, simplesmente, uma referência a mera situação gráfica ou artesanal da encadernação; é importante considerar o cenário inteiro que o prefixo grego en da palavra promove, formando uma “cadeia” de sentidos meta-figurativos em atos verbais: encelar, encapar, ensismesmar, encobrir, enlevar, entrar, engolir, enobrecer, encetar, encerrar etc. – num verdadeiro rendilhado das exigências de uma posição interna, ou na direção para dentro, como essencial à pintura e que, inconvenientemente, dá estatura às ações contemporâneas em arte.
Deixo a vocês o conseguinte: ali está posto, recolocado, imobilizado, confiado à imobilidade, estabilizado – ou, repousado, depositado, acolhido, recolhido, consignado, colecionado, totalizado e eleito – o “fazer-vir”, ou “deixar-partir” (ou mesmo abandonar ali) à pintura na pintura na Porte-fenêtre à Collioure. Uma longa história do “fazer-vir”, ou do “deixar-partir” (ou mesmo abandonar ali), à pintura na pintura.
No quadro está a teopeia das tintas, na qual habita a pintura ao passar do desvio da exterioridade de espelho ou do mundo, e se refletir imediatamente, ela própria, na reservada consolidação das linhas e das cores. Todavia, digo próximo aos olhos de vocês: se o olhar disparar o desejo de instituir-se como fonte da pintura, não poderá a pintura produzir-se, sair de si própria, ou regressar a si própria, como posição interna à pintura na pintura.
Pertence à conveniente teia da pintura o poder ser, ou parecer ser, imediatamente sensível as suas próprias aberturas – mesmo chapadas. A aparência da abertura não é aqui acidente, já que concerne favorável ao “cultivo” de buracos, ou passagem, da pintura. Inadequadamente, entre o que quadro matiza e o que ele abre, não há nenhuma exterioridade, nenhuma alteridade, nem sequer a de espelho, capaz de sugerir interpor-se – mesmo que ali estejam, como todos sabem, as marcas anteriores à ablução de tinta.
No real da tinta, a miragem da forma pintura mostra a posição interna da pintura na pintura e, ela, há de estar ali na abertura Porte-fenêtre como cor de luz, pois “a cor nunca é uma questão de quantidade, e sim, de escolha”[1].(falei, e alguém ouviu, luz de cor e não cor da luz ou luz da cor; a situação gramatical é maior em se tratando de conectivos; dou o fato como entendido).
A violação encadernada da pintura é ali destaque. Irreversivelmente, qualquer coisa a se “fazer-vir”, ou a se “deixar-partir” (ou abandonar ali), se perde ou se encontra na abertura Porte-fenêtre. Vocês sabem que um pintor pinta contra a pintura, pinta para reparar a perda da pintura e o que pinta é a lei indecorosa, a economia da “fonte”: pinta a pintura e não uma Porte-fenêtre– a posição interna da pintura na pintura só se faz atuante na condição de disjuntar de qualquer referência, de se enlevar na inseparável negatividade de tinta; mas também no mesmo lance, ensimesmar-se como Porte-fenêtre, para amortecer a sua morte, e ressaltar e superar-se naquilo que ainda não é e nem será Porte-fenêtre; e, portanto, continua sendo.
Há de acordar comigo que especulação contida na tinta da abertura redescubra de algum modo o “fazer-vir”, ou o “deixar-partir” (ou abandonar ali) à pintura na pintura, sem estabelecer vínculo entre meio e fim plástico. Redescoberta na tinta da entrada da Porte-fenêtre, o atributo sensível da pintura, uma vez que tem lugar fora da sensação, torna-se da mesma forma incerto, porque não é possível saber se pertence ainda a pintura, pelo fato, de tinta, de que é apenas sensação de poder conhecê-la naquela tinta.
De algum jeito, o sensível em geral na abertura não limita o conhecimento por razões intrínsecas à forma de presença sensível; porém, na superfície, a ablução de tinta apresenta o engodo da sua origem e rebaixa o orgulho de se fazer imagem.
A experiência que ali está é experiência de risco; experiência de arte, estabelecendo a singular expropriação plástica na modernidade, uma ablução de tinta na tinta. Algo que pressupõe tanto estar algo livre da mera experiência figurativa, quanto evoca com a abertura, Porte-fenêtre, a nostalgia da arte na qual os artistas acumularam a passagem do homem no mundo com as suas tintas.
E é tanta a densidade histórica, que eu poderia dizer que aproposição pictural, como a alma de um borrão, executa a sua própria eleição por si mesma, no vivente sumário de uma data, 1914: tudo existe na história pintura para acabar na abertura daquela tinta, cuja sobriedade de “espelho”, que não é um espelho, executa a descoberta das partidas, chegadas e abandonos da vinda de uma presença, a ablução de tinta nas tintas; uma data, um risco, uma espera na sombra.
É, de uma só vez, o “fazer-vir”, ou “deixar-partir”(ou abandonar-se), atéum ponto no qual tudo se fará como à hora de sua encadernação. Se admitirmos que a pintura Porte-fenêtre acolha a si mesma, na ambiência de aparente calma, é aceitável, absurdamente, reconhecer que as cores e as linhas tentem conter o que não podem mais, a tinta da entrada. Não podem por que a abertura, com a sua tinta, como borrão d’alma da pintura, exclui todo o conteúdo, todo sentido limitado, definido ou completo; funcionando como paradoxal “fonte” que assume o espaço pictural como um ser-fora-de-si.
Deixo isso para lá, o fundamental da analogia absurda é que a tinta da abertura comporta-se como uma ideografia, plasmada em tinta, dando-nos a ideia de ser a última pintura que há de conhecer postumamente os seus cortes no Palhaço de 1942. Isso quer dizer: é aquela da história da pintura; para qual ainda não há palavras, apenas catacrese que já estava lá como autoria da natureza da arte que caberá à contemporaneidade.
‘Caberá à contemporaneidade’ é um sinal evidente da minha absurdidade. Aquela catacrese, a encadernação da pintura, que estaria ali no quadro, não cria signos novos, não enriquece o código da pintura; de fato, transforma o seu funcionamento, produzindo outro valor de solidão das coisas e das tintas.
É esse outro valor que, na abertura, funda a passagem, através daquela tinta, ao dar figura ao que não tem, grifando a sua presença, mascarando-a ao mesmo tempo em que a qualifica, e, assim, a extrai do fundo pantanoso do figurativo, onde se mistura toda a história da pintura. Isso é o indício de uma conivência entre o que poderia chegar, partir ou se abandonar ali ou aqui na América ― pois, aqui, figura é ideia; o que não é nada figurativo.
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Aqui estive e lá também. Só posso ir-me na medida em que encarno a analogia. É ela que me trouxe até aqui e que me faz ainda continuar. Solto-me com ela e não mais repito. Vou só.
Acompanhem-me só. Absurdamente vejo que o esquife do triunfo da arte ilusionista, à prima vista tomado naturalmente por uma porta-francesa, sem o acervo dos artigos da paisagem renomada de uma cidade mediterrânica, que, no curso natural de todas as coisas históricas, continua a suprir os requisitos funerários de toda descrição necessária de uma pintura.
Mas não há descrição: ressoa a pintura pelo seu dentro afora, pela capa rígida e em desenvolta tinta. Necessário dizer isso? De fato necessário porque o brilho opaco em seus boleros de sombra joga com o que se joga no refinado interior em vã direção a nós – o que é diverso nesse mundo mortal, agora nosso, quando no meio da sombra, no seio da entrada, a foice das horas batidas, indo justo despidos à dentro, decorre, chega e se abandona em preto; 1914.
Agora a observo no esquecimento. Da veluda tinta à senhora sombra há escassos espaços em boa largura e daí os excessos são como instigados por uma ou outra das causas acidentais do todo: a repentina tinta e a sua capa de sombra, ou mancha.
Tentar derramar um pouco mais de tinta para me enlevar à total atmosfera, à conscienciosa releitura das escrituras para “fazer-vir”, ou “deixar-partir” (ou abandonar ali), à posição interna da pintura na pintura, em que eu, o gago, bati, contra todas as regras, o dito, quando intimado sobre as minhas pretensões dessa investida, deparando-me com o momento solene de pintura Matisse.
Há medo da tinta tão cedo no dado da lânguida dança de uma escrita, quanto à alongada língua de uma tinta numa pintura. Segue-me na esteira da calda das sombras ou espreita além? Vai, vai lá, vai e pensa no que sabes e no que não sabes.
Como tombou a tinta do seu pensamento? Já penso nisso e o perguntaria, num quão balbuciante, seguido de um rumo à sua morada. Do que ouviu falar quando fez a ablução de tinta? De 1914?
Pensamento em tinta tombou, mas como? Não sei o que digo, nem o que digo o que sei: pensou e banhou. Quem o repete escreve sua morada ao avesso. Torna-a própria e, enfim, fala pela primeira vez: a posição da pintura na pintura ao criar a própria encadernação é o fato limite e ambíguo da arte, agora.
A luz que alonga a superfície para longe do que pode, esculpe o dia, ermo de tinta escura, e pressente o dado negro medo logo cedo. O mar propenso – fora, um novo dia, retrospecto, inverso, espesso e plácido –, é órfico, estamos em 1914, quais as câmeras em que a luz inteira vive a sua completa ausência.
Desculpa alguma toma de assalto o perigo que a banhou e que de fios tinta revestiu a figura que ousou a se pôr em pele de tinta. Mas o que é necessário?
Aliás, por que necessário? Necessária descrição dos funestos requisitos da arte, suprindo a contínua natureza de todas as coisas, que, no curso, acidente extremo da paisagem de um porto mediterrânico, renomado por acervos históricos, naturalmente tomados à prima vista, se põe a diferenciar a estranheza da estranheza. A pintura vai à língua, sem som ou sono, fiada e finda. Daqui – mas onde? –, como herdeiro de uma linhagem de eras e horas, há lembranças que encontramos sumidas nos óleos já velhos de qualquer Rembrandt, não é?
Há partidas, chegadas e abandonos da vinda de uma forma com presença. Guardemos sempre na memória conectado com o que nunca é ou já foi antes, no qual havia, há, haverá, um noturno precedente de sua natureza em pintura furiosa, sibilando em si de satisfação e murmurando o aberto, abrindo o mundo no fundo de uma superfície. Agora pela memória inspirados, há de “fazer-vir”, ou “deixar-partir” (ou abandonar ali), à pintura no todo da tinta da abertura.
Porque era abertura, luz nenhuma disputava. Cego, sem remissão dum favinho de luz, dessa que é a nossa. A gente olha para dentro. Daí, a sombra não deixa olhar rumo nenhum. Vê a luz que ali pena? De noite, se é de ser, o céu embola o brilho em negro.
O tempo que fiquei, deslembrado, detido naquele singular, o quanto foi? Mas, quando se dá acordo no absurdo, sarando dos olhos, ao fechá-lo, e conferindo o juízo como um estranho distinto da estranheza, a luz sem sol me permite dizer que não estou mais no asilo daquela memória pobre, mas em outra: na encadernação de tinta, a ablução de tinta; herdeiros que todos somos ― contemporaneamente, é claro; claro?