Sobre As Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, e O Velho e o Mar, de Ernest Hemingway, pode-se dizer inúmeras coisas que se cruzarão infinitamente nas tensões afetivas que eu quero traçar. Ainda que seja Marco Polo quem descreve a Kublai Khan as cidades por onde viaja, o imperador é quem retém somente as palavras que deseja. E mesmo que o velho pescador se coloque a navegar, é o mar e o peixe que guiam esse barco. “Quem comanda a narração não é a voz: é o ouvido”1. Reparo então, que não importa o sorteio me colocando frente a tal ou tal história – para a operação inventiva da leitura, o que impera é o desejo e esse (mesmo) outro a me confrontar.
Quando o velho Santiago leva o barco do azar para a pesca, não é ao sucesso que ele se dispõe, mas à sua pulsão desejante. A verticalidade que guiará seu diálogo – seja com a lua, seja com o peixe, seja com sua própria mão – é um desejo inventivo que dá voz aos seres em seu entorno, ou ainda, dentro de si. O que segura por dias a fio um peixe preso à extremidade do barco é o desejo de um peixe, de um outro – e aos poucos já não se sabe distinguir qual é o bicho, qual é o homem. É na potência da imaginação que esse mundo de seres se apresenta e ganha voz, até que a invenção se torna o próprio império, e nada mais importa.
É também na dimensão do desejo que as cidades invisíveis se erguem. “Ele pensava em todas essas coisas quando desejava uma cidade”2. Os lugares absurdos por onde viaja o mercador veneziano se armam numa simbologia de gestos e ruídos que ele seleciona para compor suas narrativas, mas também através de um continuum interpretativo que compõe o desejo do Grande Khan – que em determinado momento já não quer mais ouvir sobre as cidades, mas sim inventar as suas próprias. O espaço no real só importa na medida em que é inventado para assim existir, que movimenta o universo imaginário ou que é por ele movimentado. Ao apontar que “o Grande Khan decifrava os símbolos, mas a relação entre estes e o lugar visitado restava incerta”, Calvino identifica a lacuna essencial da incerteza como potência de criação, pois é a partir dessa possível descoincidência que uma legião de localidades invisíveis passa a existir.
Ao ser indagado por Kublai Khan o motivo pelo qual ele nunca falava de Veneza, sua cidade natal, Marco Polo lhe responde que está sempre a falar de Veneza e completará “para distinguir as qualidades das outras cidades, devo partir de uma primeira que permanece implícita”. Nesse sentido, o que Calvino coloca como o movimento em direção a um desconhecido é sempre um apontamento a um outro de si mesmo – só se pode falar em Veneza. E se o Khan então repara “que as cidades de Marco Polo eram todas parecidas, como se a passagem de uma pra outra não envolvesse uma viajem mas uma mera troca de elementos”3, pode-se dizer que o homem será sempre a sua cidade originária no desejo pulsante da criação de uma outra. Também em O Velho e o Mar se dá essa constituição de um outro que é e será sempre o mesmo. Ao deslocar a sua mão, que passa a ser interlocutora do resto do corpo, ou quando inicia uma completa identificação com o peixe, o que há é o desejo de um outro em si mesmo – e todo outro já é si mesmo. Quando o personagem diz “não há como se perder no mar, minha ilha é grande”*, seu corpo é a própria ilha que ocupa todo lugar em que está, e tudo com o qual se relaciona é sempre ele mesmo.
Ao se entregarem a um desejo – seja de uma cidade construída em degraus, seja de um peixe maior que o próprio barco – os personagens de Hemingway e Calvino movimentam um imaginário capaz de criar inúmeros “outros”. Devo dizer, recaindo numa metalinguagem inevitável, que a construção de uma pulsão desejante do diverso, realizada nos livros em análise, me parece a própria questão da teoria da literatura, chamemos ou não de comparada. No processo crítico-ensaístico o que guia o pensador é sempre um desejo – do levantamento de uma hipótese, da abertura de um rizoma, um desejo de falar sobre, de ler. E esse desejo se arma sempre como o desejo de um “outro” – que divida comigo, que se contraponha, que me afronte ou me acalente, mas que existirá sempre em mim, como um prolongamento do meu corpo. Por isso o velho morre quando o peixe – seu outro, seu mesmo – morre. Por isso o diálogo interminável de Marco Polo com o Grande Khan resta – porque há sempre a afronta desse outro que só sabe através de mim, que me desafia e me abriga entre fumos de cachimbo. Essa operação inventiva do mesmo e do outro é simultaneamente um modo compar e díspar de tratar a leitura e o mundo, pois não há relação que se trace sem o que sou eu (o mesmo, compar) ou sem o que é outro (o novo, díspar). Em todo movimento em direção a alguma coisa sou sempre eu em direção a um novo, e por isso meu desejo, e por isso meu outro, minha perda, meu dispêndio.