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Infância; saudade ou esquecimento

por Isadora Marques


         No texto intitulado “O jogo das letras”, presente no Rua de mão única, Walter Benjamin relembra de um jogo com o qual brincava na infância. Trata-se de um pequeno suporte inclinado, com pequenas plaquinhas acomodadas, cada uma tendo em si, grafada, uma letra do alfabeto. A brincadeira consiste em empurrar e ordenar as plaquinhas de modo a formar palavras. Benjamin comenta que as diferentes plaquinhas, cada qual em sua singular perfeição, se ligavam umas às outras de acordo com a ordem das palavras como num “estado de graça”. À medida que as palavras assumiam suas formas, Benjamin tentava tocar esse “estado de graça” que era, contudo, intangível. E se sentia, como se renunciasse, sem possibilidade de interferência.

         Ao se lembrar do jogo, Benjamin não se via apenas diante da saudade do hábito de jogá-lo, mas, da saudade de toda a infância representada por ele, de todo um passado que o autor não pode definir ou lembrar. A infância que “sabia manipular a mão que empurrava as letras no filete”, e que nunca poderá repetir-se da mesma maneira. Diz ele: “Hoje sei andar; porém nunca mais poderei tornar a aprendê-lo”.  Entretanto, há algo que permanece, depois de passada a infância, depois de vivida a vida, de esquecidos os fatos, e guardadas as experiências. Diz Benjamin: “A mão pode ainda.” A mão pode ainda, isto é, a potência que antes era evidenciada no hábito do jogo com as letras, permanece agora de outra forma no hábito da escrita. 

        Depois de passado o tempo, essa mão que ainda pode, ou seja, que ainda possui capacidade para algo, permanece revestida de certa potência. A recordação da infância, que se dá por meio da capacidade de brincar com as letras, não projeta o passado de modo a fixá-lo e, assim, a bloquear, ou impossibilitar, a experiência. Em vez disso, a potência que permanece, no tempo presente, projeta e apresenta um passado novamente possível, porém, de uma outra maneira. A mesma faculdade exercida a partir de uma nova experiência.

        É possível pensar que é esta a potência da faculdade da memória: deixar o passado entrever sua própria condição de possibilidade; recordar um passado não determinado e fixado cronologicamente e, por isso, indefinido, e que se abre no tempo presente como experiência. Como afirma Paolo Virno, no texto "O fenômeno do déjà vu e o fim da história": lançar o ato em desenvolvimento como “recordação do presente”, e não como “falso reconhecimento”. Segundo ele, a recordação do presente, despertada pelo fenômeno do déjà vu – a sensação da impotência e do espanto ao se tentar lembrar um acontecimento que parece já ter ocorrido, num passado que, no entanto, não se define – provoca a experiência do possível e faz coexistir simultaneamente duas instâncias heterogêneas e concomitantes: a faculdade e o ato.

        O ato não ocorreu no passado como um evento pronto e acabado e que, no presente, pode ser relembrado, sempre remetendo a um determinado momento histórico. A recordação do presente faz um movimento contrário. O momento da recordação só é possível depois que o ato se torna experiência. Ou então, a recordação é posterior à realização do acontecimento que se abre como possibilidade. Por isso, de acordo com Virno, a História deve ser historizante, ou seja, deve voltar-se para o passado como potência, como recordação da experiência; e não deve ser historicizante, de modo que, talvez, se voltaria para um passado acabado e impotente, e para o bloqueio da experiência.

        Do mesmo modo, a poesia e a literatura, como a palavra proferida num ato novo em desenvolvimento, e como testemunho da experiência, podem tornar a língua novamente possível. Assim comenta Adorno sobre Paul Valéry, em O Artista como Representante, que a arte que ele oferece “significa fidelidade à imagem do possível do homem”; e que, para ele, a “grande arte” seria a que exige do artista o uso de todas as suas faculdades.

       Ainda no texto "O Jogo das Letras", diz Benjamin que “para cada pessoa há coisas que lhe desdobram hábitos mais duradouros que todos os demais. Neles são formadas as aptidões que se tornam decisivas em sua existência.” E, para ele, esses hábitos foram os atos da leitura e da escrita. Por isso sua saudade pelo jogo das letras, que permanece, ainda, como potência, como recordação de um passado que só se define como indefinição da infância. Que se projeta como toda a infância vivida e não como um momento determinado. E que, no agora, é recordada pela potência da leitura e da escrita, no ato da experiência.

        Sobre isso, diz Benjamin: 

Nunca podemos recuperar totalmente o que foi esquecido. E talvez seja bom assim. O choque do resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, forçosamente deixaríamos de compreender nossa saudade. Mas é por isso que a compreendemos, e tanto melhor, quanto mais profundamente jaz em nós o esquecido. Tal como a palavra que ainda há pouco se achava em nossos lábios, libertaria a língua para arroubos demostênicos, assim o esquecido nos parece pesado por causa de toda a vida vivida que nos reserva[1].



[1] Benjamin, W., Rua de mão única, 2012, p. 105