A primeira formação de Veronica Stigger foi em jornalismo. Mas faz tempo que ela deixou as resenhas e se lançou às artes. Doutora pela USP em Teoria e Crítica de Arte, é professora universitária e autora de mais de sete livros. Entre eles, os pequeninos e divertidíssimos Minha Novela e Delírios de Damasco, e o recém-lançado Opisanie świata (2013), que, ao narrar a hisória de um polonês que vai ao encontro do filho desconhecido em meio a floresta amazônica, nos permite uma rápida viagem pelos principais pontos da nossa cultura literária.
Nesta entrevista, a garupa levanta algumas questões importantes na bibliografia da autora, como a composição por ready-made; sua relação com o modernismo brasileiro; e com a própria ideia de brasilidade, principalmente através da figura do índio. O coletivo garupa sente profunda gratidão pela generosidade e disponibilidade em nos conceder a entrevista.
garupa: Poderia falar um pouco sobre seu processo criativo e seu projeto literário?
Veronica Stigger: Quanto ao processo criativo, primeiro vem a ideia (de uma conversa com amigos, de uma frase ouvida na rua, de uma notícia lida num jornal, de uma imagem que me vem à mente etc.); depois, começo a procurar a melhor forma de realizar essa ideia. Em outras palavras, qual a melhor forma de contar uma determinada história? Será um narrador em primeira pessoa ou em terceira pessoa? A partir de que ponto de vista será montada a narrativa? Quem serão os personagens? Como eles serão? E assim por diante. É no decorrer deste processo – o qual, para mim, é o mais demorado; pode, em alguns casos, levar anos − que chego à forma que acredito melhor configurar textualmente aquela ideia. E essa forma pode ser a de um conto, de um poema, de uma peça teatral, de uma legenda, de um anúncio classificado, de uma palestra, entre tantas outras. Quanto ao projeto, não penso a forma literária como algo estável ou estanque, fixada em gêneros definidos, como o conto, o poema, a novela, o romance. Gosto de trabalhar com a forma, desrespeitando propositalmente os limites dos gêneros. Atrai-me uma certa promiscuidade formal. Acho-a mais verdadeira quanto ao tempo em que vivemos. Para mim, em última instância, o trabalho do escritor deveria necessariamente passar por uma tentativa constante de colocar em questão − ou seja, de levar a seus extremos, e ultrapassá-los − não apenas os gêneros literários, mas a própria ideia de literatura.
garupa: Como você relaciona seu trabalho literário às suas pesquisas com artes visuais e outras formas de expressão?
Veronica: Minhas pesquisas em artes visuais acabam inevitavelmente influenciando meu trabalho literário e vice-versa. O Opisanie świata, por exemplo, partiu, de uma certa maneira, das pesquisas que estava desenvolvendo na época. Estudava, no meu pós-doutorado, entre outros, o artista polonês Roman Opalka (de quem tomei emprestado o nome para o protagonista da narrativa) e a escultora brasileira Maria Martins, principalmente sua série de esculturas e textos sobre os mitos amazônicos. Um dia, meu marido, o poeta e crítico literário Eduardo Sterzi, ao me ver absorvida naqueles dois universos tão distintos – a Polônia e a Amazônia –, me fez uma provocação: “por que tu não escreves um romance que comece na Polônia e termine na Amazônia?”. Foi o que bastou para eu começar a elaborar o livro. Como não podia deixar de ser, incluí nele uma série de personagens que fazem referência, mesmo que vagamente, a personalidades históricas também estudadas por mim, como Raul Bopp, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Kurt Schwitters. Nos livros anteriores, a relação com minhas pesquisas também é perceptível, não apenas a partir da alusão a artistas e escritores que me são caros (como toda a seção “Histórias da arte” de Os Anões), mas também pelo uso de procedimentos diletos da arte moderna e contemporânea, como o ready-made, a citação descontextualizada, o uso paródico de formas de escrita originalmente externas à literatura etc. Vale ressaltar ainda que dois de meus livros foram concebidos originalmente como intervenções artísticas não somente literárias. Delírio de Damasco deriva de um convite feito pelo Sesc para fazer uma intervenção visual na Mostra Sesc de Artes, em 2010, nos tapumes de uma unidade em construção no centro de São Paulo. Elaborei as Pré-Histórias, 2 (título original do projeto), em que apresentei, pintadas sobre placas de madeira, frases ouvidas nas ruas. Dois anos depois, reuni essas frases, mais as que foram censuradas na época da intervenção no Sesc e outras colhidas posteriormente, em Delírio de Damasco. E meu último livro, Minha Novela, lançado no ano passado pela mesma Cultura e Barbárie, foi exibido originalmente em formato de vídeo, como parte de uma instalação, na mostra que realizei na Embaixada do Brasil em Bruxelas, entre dezembro de 2012 e fevereiro de 2013. Ele pode ser visto no Youtube, mas sem a ambientação da mostra (uma sala de estar com poltronas, mesinha de centro e televisor).
garupa: No seu último livro Opisanie świata existem referências diretas ao nosso modernismo, projeto que é, entretanto, considerado “completo” por Silviano Santiago. Como leitores, sentimos uma grande proximidade com o movimento, mas também um enorme frescor em seus livros, o que indica exatamente algo da ordem da diferença. Poderia falar um pouco sobre quais relações que seu trabalho estabelece com o modernismo e, em um sentido mais amplo, com a tradição?
Veronica: Opisanie świata não deixa de ser uma homenagem ao modernismo. Se o leitor estiver atento para a rede de relações e sugestões que busquei criar por meio dessas apropriações de nomes (e de textos) perceberá que o livro é também, a seu modo, uma espécie de história poética do modernismo brasileiro. Acho que há uma vontade de experimentação neste período da história artística e literária brasileira que ainda não foi de todo esgotada. E, como já disse, me interessa muito a experimentação. Quanto a ser um projeto “completo”, diria que é mais ou menos como uma investigação policial: o inquérito está concluído, até que alguém, ao descobrir novas evidências, invente de reabri-lo. Quanto à tradição, não vejo como escrever a não ser em diálogo com ela, um diálogo que, porém, não pressupõe necessariamente filiação, derivação ou subordinação. O último texto do Gran Cabaret Demenzial, acredito, deixa isso bem claro. Diz assim: “Morreu // atropelada / pelo / Machado de Assis”. Não faz muito sentido, para mim, fingir que a literatura começou hoje e que somos as primeiras vozes a soar no mundo.
garupa: Flora Süssekind diz que em sua obra encontra-se “um processo de composição via ready-made”, no qual a montagem é necessária. Este é um procedimento usado também por Oswald de Andrade em seu livro Pau Brasil, que é um livro ilustrado por Tarsila do Amaral e, por isso, um livro-objeto. Seria possível estabelecer uma relação do Opisanie świata com estes dois procedimentos oswaldianos: o ready-made e o livro-objeto?
Veronica: Sim, seria possível, embora não se restrinja a uma comparação com Oswald de Andrade. Antes dele, há Marcel Duchamp, o inventor do ready-made e um dos artistas que estudei na minha tese de doutorado. Talvez tenha sido mais com os artistas plásticos do que com os escritores que aprendi a tomar gosto pela experimentação. Daí, eu trazer constantemente para o terreno da literatura procedimentos caros às artes visuais. Daí também minha preocupação com a forma que o livro terá. Para mim, a forma gráfica do livro é indissociável do texto. Enquanto escrevo, já vou pensando na forma que o livro deve assumir.
garupa: Como a figura do índio aparece em Opisanie świata? E, ainda nesse sentido, como foi utilizar a Amazônia como espaço para a sua narrativa? Nessa viagem de volta, que nos parece central no livro, e que, entretanto, não restitui uma origem, como surge esse espaço amazônico e qual a relação com movimentos sociais como o “Índio é nós”?
Veronica: Curioso você me perguntar sobre a figura do índio em Opisanie świata, porque cheguei a cogitar incluir um personagem indígena, mas depois desisti – e explico por quê. Entre o final de 2011 e o início de 2012, escrevi um livro infantil, chamado Onde a Onça Bebe Água, a partir de uma proposta do Sesc São Carlos de criar uma história a partir da teoria do perspectivismo desenvolvida pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. Enquanto o fazia, pensei transpor não apenas o personagem principal do livrinho, mas também a sua história, para o Opisanie świata. Acabei desistindo, porque achei que não funcionaria. Mas agora, a partir desta pergunta, me dei conta de como a história de Joaci, de certa maneira, impregnou o romance. No livro infantil, Joaci dorme e, no sonho, volta para sua aldeia e a encontra destruída. Não sobrou mais ninguém lá: nem seu pai, nem sua mãe, nem seu irmão, nem seus amigos. Ninguém. Há apenas uma onça, dormindo na rede que era de seu irmão. Em Opisanie świata, o índio resta apenas como evocação: seja na história que se conta a respeito de Bopp (“que ficara demais antropófago no meio dos índios”), seja por meio de sua mitologia (a cobra grande, a uiara), seja na comparação que faz Bopp em relação à música tocada por cinco rapazes numa noite alemã (“Pensou que seria semelhante àquilo um jazz tocado pelos Waimiri Atroari”: precisamente a tribo massacrada durante a ditadura militar pós-1964, num capítulo que fala de “fantasmas que tivessem vindo do futuro”). Escolher levar Opalka da Polônia à Amazônia estava relacionado às minhas pesquisas, mas também era uma escolha política. Opalka sai de uma região que será, em muito pouco tempo, destruída pela guerra e se dirige a outra região em que também há uma guerra, embora mais silenciosa, em curso. Neste momento em que o Brasil parece às vezes querer ignorar a Amazônia ou, pior, transformá-la naquilo que ela não é – em plantação de soja, em campo para o gado, em deserto pontuado por megausinas hidrelétricas, desrespeitando frequentemente os direitos indígenas para atingir esses objetivos –, era importante que meu protagonista se dirigisse a ela. A Amazônia de Opisanie świata é aquela do final da década de 1930, a Amazônia modernista portanto, uma Amazônia vista como uma natureza primordial e ainda em formação, origem sem fim, nossa reserva de futuro (e não meramente de “recursos” exploráveis). Mas já prenuncia também, em certa medida, a Amazônia de Joaci. Diz Jean-Pierre a Opalka quando este chega à região: “Isso aqui já foi grande. [...] Mas agora não é mais”. E, comparando a região com a Europa, ensaia um elogio desesperançado: “O negócio é ficar por aqui mesmo. Aproveitar antes que a cidade morra de vez, para sempre. Pelo menos, aqui é quente. Não faz aquele frio medonho da Europa. E tem verde. Um verde lindo. Pena que tudo isso um dia vai acabar também”.