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nº 20

por Natasha Felix


CONTÁGIO

o corpo sujo é barrado no ___
mercadinho municipal na farmácia no
enterro do sobrinho na missa do galo na
reunião de moradores do bairro. no hospício o
corpo sujo é bem vindo. o meu corpo
sujo é hospício
enquanto no banho lugar de onde
saio cada vez mais imunda
porca sem rabo preso azul no entanto
a língua suja de mulher suja não se aguenta
tem nome de urubu quando fala urubu
tem nome de tesão quando fala tesão
tem nome de socorro quando fala
é suja também imunda muito a língua
quando ousa o sistema linguístico

deixa água de lastro por ele inteiro
o sistema contaminado pelo chorume
o sistema linguístico agora extraviado
do cômodo bem instalado onde habita e o
corpo sujo ainda treme e vacila os joelhos
como um fungo uma doença como
árvore de joão bolão o corpo desavisado
permanece assim mesmo
incomodando, atraso ao contrário.

***

MINICONTO DA SOBREMESA

uma boa foda numa picape 98
o sonho americano afinal
eduardo barranco a baixo
logo depois.

***

POEMINHA MATINAL

não sou outra mulher e nem desejo ser
prefiro o calor dos trópicos pigarreando 
nos meus olhos encharcados de limão.
prefiro vinte anos sóbria e, à 
luz do pleonasmo, me manter sob regime
carcerário e em árido celibato.
prefiro engolir as chaves de casa e 
cochilar calmamente dentro dela 
em chamas com plantas e livros e frutas.

não sou outra mulher nem desejo ser
como aquela que me olha de longe 
mastigando o naco de gengibre, 
apossada por algo que não ouso dar nome,
enquanto danço um samba 
menos brabo do que violento 
sobre a tumba dos homens 
que nem sequer amei.

***

UIVO LATINO

estive em havana, minha
pele era sempre quente e ligeira
no rg vinte e três anos.
não tinha nenhum doutorado
ainda
fumava haxixe quando dava
bebia mais do que podia e vez ou outra
ouvia vozes amarelas dentro do silêncio.
naquele tempo eu também
colecionava fantasmas e não conseguia
concentrar em um ponto fixo
por mais de nove segundos.
contava vinte e três anos
tinha amado homens e mulheres
em camas que já não me lembro
mas era com montevidéu que eu sonhava
durante o gozo como se fosse hoje.
roubava amendoim no supermercado como
que saqueasse um grande latifundiário
e juntava moedas pra fugir da próxima esquina
da próxima viatura, do próximo presidente,
da próxima chuva.
foi em havana quando enlouqueci. eu
vi todos os meus amigos completamente
quebrados como bolaño e papasquiaro.
em abril enterravam dezoito jovens
como indigentes em covas comuns
e ficava mais difícil a cada dia
bailar la cumbia sem chorar.
foi naquela época
eu não sabia
juro que não sabia.