Livre interpretação de uma gravura de Hans Staden
Vejo a carcaça de um fauno
no regaço agreste.
Ao saírem,
calados,
em fila indiana,
os investidores arrastam
as canetas, as pastas de couro,
os parafusos das cadeiras,
lista de ramais.
Espero até ficar sozinho
e cravo meus dentes na saborosa
ata da reunião.
Mastigo planilhas
com voracidade,
penso
na recepcionista do prédio.
Será que ela tem
mau hálito?
Será que ela tem
gengivas bonitas?
Será que ela tem
amígdalas bonitas?
Deixo a sala.
Engulo os metros
de carpete do corredor
& a simpática
funcionária da limpeza,
que manejava um delicioso
aspirador de pó.
Já no térreo,
à falta da recepcionista,
provo um pouco
do segurança de plantão.
Os caninos de Lévi-Strauss
fascinam os tupinambás e
brotam, como navalhas,
na ladeira da Sacopã,
uma fímbria de sangue,
tijuco da evangelização.
Consulto minha agenda
para saber o endereço
de cada um dos executivos
com quem tratei mais cedo,
na rápida conferência
que me abriu
o apetite.
Faço todos de petisco;
suas famílias também.
Volto à rua, disparo.
Boto para dentro
os semáforos,
as tampas dos bueiros,
os postes de iluminação,
os bancos da Praça Floriano.
Fito o asfalto faminto.
Fito o asfalto, faminto.
Os recifes rubros e ruidosos
contra o piche
são sirenes.
Consigo reconhecê-las
a quilômetros de distância.
Quando eu era pequeno,
canelas à mostra,
costumava correr
atrás de ambulâncias,
a viração do óleo queimado
atiçando a tarde.
Paro em um bar e assisto
ao telejornal em closed caption.
Enquanto aguardo a digestão,
gargalho da estupidez
do comentarista político.
E pondero: antes da conta,
uma xícara de café
sempre cai bem.
O deserto de Gobi
cabe em uma ampulheta,
mas eu, arrependido
como um vampiro cristão,
tonto de remorso,
resolvo embarcar em um trem coxo
da Central do Brasil em direção
a Saracuruna.
Ladeio recôncavos & borracharias,
espicho o estômago assombrado
para me intrometer em conversas
que não me dizem respeito.
A fogueira na multidão triunfa
sobre os plutocratas.
Rangem as mandíbulas de nanquim.
***
entre certos instantes de brahms e uma cloaca, V
– (…) Hath she any discoverable principle of being?
– None, save the freedom of a broken law (…).
Nathaniel Hawthorne, The Scarlet Letter
Tua sombra transborda das paredes rasgadas
E do chão raso de pedras portuguesas para
Salvar minha juventude do cansaço
Dos velhos amores. Foi estranho conhecer-te,
Naquele botequim, teu batom a macular
O copo americano, tua boca a clamar
Por mais cerveja barata. Nem sequer me disseste
Teu nome. Em vez disso, perguntaste se eu
Já havia chorado a morte de alguém.
E eu disse: de meu pai; e tu te riste inteira.
Quebraste o violão do rapaz tristonho que
Tocava boleros vis e, sem antes prestar
Reverência ao público, cantaste três
Músicas da Cesária Évora em sequência. Não
Pude deixar de reparar: pediste um lenço
Para secar o suor agridoce que escorria
De tua testa. Entoavas a morna com o mesmo
Entusiasmo dos apóstolos em Pentecostes,
Com o mesmo cuidado de quem retira
Um cisco preso no canto do olho da criança,
Da criança que agora floresce em tua barriga e
Que eu já cismo em chamar de minha, sim,
De minha. Passei os últimos três dias
Catando gafanhotos nos quintais baldios das casas
Contíguas à nossa e pensando nos discursos
Que proferirá a garganta delgada
Do bendito fruto de teu ventre. Quando eu vivia
Sob o teto de minha mãe, falava do mundo
E do ser político. Hoje, leio obituários.
Mais tarde, quero te ouvir cantando outra vez.
***
entre certos instantes de brahms e uma cloaca, VII
Who is the third who walks always beside you?
When I count, there are only you and I together
But when I look ahead up the white road
There is always another one walking beside you
Gliding wrapt in a brown mantle, hooded
I do not know whether a man or a woman
—But who is that on the other side of you?
T. S. Eliot, The Waste Land
Outubro é o mais cruel dos meses;
não por causa de seus lilases,
mas porque aquele nariz grego,
sem curvaturas, sem depressões
acentuadas, aquele nariz que só se pode ver
no rosto da Vênus de Milo ou do Apolo Belvedere,
aquele nariz insiste em apontar
para cima: seta sem rumo.
Os filhos, os netos & os amigos de longa data
cochicham e bocejam e fumam cigarros.
Trituram-se as sementes de melancolia
nos moinhos da resignação.
Sabes, o fim não é
calmaria de uma praia erma em Santa Lúcia,
e sim uma torrente de sons.
O fim não é
escuro como a pena de um corvo.
O fim são Sóis sobre Sóis sobre Sóis
estampados nas paredes de uma galeria apinhada
de reis macilentos.
O fim é um dilúvio de luz sem fim,
conquanto o homem deitado,
natureza que ofega
dentro de um módico ataúde,
resista nas trevas
serenas dos começos. Laivos de hulha
a marcar o papel, comunhão
profana de negros sulcos
em uma antiaquarela que, nos perigosos
estreitos da memória,
parece ter sido feita de espuma.
Em Outubro, avançam
os aríetes forjados para derrocar os baluartes
ao redor dos misantropos.
As inibições do homem deitado
vêm abaixo sempre que ele se dispõe a sonhar;
e, na penumbra, a voz-martelo de sua mãe
não esmaece: eu & você fomos reduzidos
a tênues filamentos de rengo.
Não houve ouro,
não houve incenso,
não houve mirra,
mas ouve Outubro:
_______
– Intercalam-se doutrinas & vertigens,
rochas úmidas, musgos.
Existe um par de asas rodopiantes no azul
para cada prenúncio não concretizado.
Os rouxinóis & os pintassilgos abandonam
seus ninhos de chumbo
e se colocam a serviço de Cassandra.
Querem conceber
melodias que se ajustem
às previsões escatológicas
da princesa desacreditada.
Tantos profetas à míngua, tantos profetas
à margem da História.
Profetas
que vilipendiaram as necrópoles
onde jaziam os puritanos casmurros,
que distribuíram aos pobres
palavras de consolo & porções de anfetamina,
que ligaram a Nossa Senhora de Copacabana
à ponte do Brooklyn,
que derramaram lágrimas copiosas
aos pés de William Carlos Williams,
que comeram, a garfadas, os acordes
do trompete de Miles Davis,
que contemplaram carrosséis nas conchas
dos caracóis encalacrados,
que ofereceram a outra face à mão pesada
do Padre Antônio Vieira,
que festejaram a virada do milênio
muito antes da virada do milênio,
que transformaram a obra de Sade
em uma cartilha de boas maneiras,
que morreram de bala e de cirrose
e de AIDS e de fome e de desgosto,
que defenderam o celibato & a libertinagem
em uma mesma passeata,
que fizeram planos de erguer
uma nova biblioteca para Alexandria,
que regaram os girassóis amarelos
de Van Gogh a fim de que depois
pudessem vê-los murchar.
Poupem os profetas
do exílio das segundas-feiras.
Salvem os profetas
dos infernos do sentimentalismo.
_______
– Abram caminho para os fiordes!
A paternidade traz consigo uma dor típica,
extraordinária, impossível de ser
compartilhada. Enquanto o gelo erode
as montanhas,
o andarilho pensa em seu pai
e constata que amar um filho
é disciplina desconhecida,
é arte
avessa a julgamentos.
Entregue à inospitalidade silenciosa da paisagem,
nu aos olhos que, do alto, tudo veem,
ele murmura frases desconexas,
repletas de ventania,
e faz do branco total
um disco de cores
e, com seu estribilho,
reverte os anos
embaralha as estações,
mostra que a tundra
vence a neve.
(Toma, pai! São teus estes arbustos silvestres.
Pedi a eles que estivessem prontos
a tempo das comemorações
de teu aniversário.
Vê como se esparramam
sobre esta planície fria.
Leva também os ecos de cera diáfana
que precipitaram daquelas nuvens carregadas
e que ora te concedo
à guisa de tão merecido presente.)
O andarilho sente,
por baixo de sua pele trivial,
mover-se uma legião de cavaleiros
ensandecidos.
As mãos calejadas desses homens calejados
desembainham estrelas
para brandi-las na hora da guerra.
(A meia-lua de luz glacial rompe meu crânio
porque não aguenta ser
mera ideia.
Seus feixes absorvem
o tom carmesim da tinta que escoa
por meus capilares.
Uma hidra inconstante reside no âmago
de todas as vontades.
Queremos com as pernas, não com o coração.)
_______
O dia em que me percebi humano
foi o dia em que desci, pela primeira vez,
à adega da fazenda.
Nas garrafas reclinadas,
de vidro teso como corpos que,
embora esgotados,
não conseguem repousar,
os sabores
da uva,
do carvalho
e da terra púrpura
amalgamam-se ao gosto rançoso
de um esplendor decadente.
Rótulos em retalhos
simbolizam a urgência de uma nobre promessa
que trespassou
monumentos & mensagens
até dissipar-se.
Há certo orgulho nessas garrafas.
Orgulho
de soldado francês,
de mãe vaidosa,
de metrópole dominante.
É o mesmo orgulho do qual costuma se valer
o burguês tacanho
na tentativa de amenizar a culpa que,
segundos antes da meia-noite,
liberta-se
do vácuo
a fim de atormentar-lhe a consciência
supostamente inabalável,
empanturrando-a
de miragens obscenas:
crônicas de marimbondos em alcovas.
Filhos meus!
Deem-me um gole de orgulho, aplaquem
minha vergonha.
Ao transpormos as raias da infância,
renunciamos ao sutil álibi da imaturidade.
Deixamo-nos colonizar pelos arrepios do vexame
para que a morte,
halo de um anjo democrático,
possa vir a ratificar
os pequenos constrangimentos que,
juntos, formam nossas biografias,
essas estranhas receitas de cozinhar o tempo.
Sinto a linfa inebriante do outono a purgar
a terrível orquídea da existência;
e o fogo-fátuo,
que nada queima,
conduz-me ao ponto mais remoto
na estrutura oca
de uma tempestade.
Volto a ser criança despudorada.
Entre Outubros, profetas & andarilhos,
hei de dançar nas arestas da realidade,
um verão que corre ao encontro do céu.