SEÇÕES

nº 11

por Marcelo Reis de Mello


mesa de dissecação

fico olhando para essa mesa
de dissecação c/ prateleira inferior
e recipiente de coleta

estrutura tubular inox reforçada
rodízios Ø 05” com trava
prateleira inferior gradeada
seu corpaço sobre o inox
não (estava frio)
nem o que havia dentro

as veias como a av. presidente vargas
na hora do rush, você dizia:
– prefiro que alisem minhas mãos enquanto estiverem quentes

alguns estudantes agora se lamentam
– hoje há cada vez menos pessoas completamente abandonadas
– estou vendo o dia que vamos ter de aprender medicina com bonecos de plástico

continuo ali, acompanho o corpo
antes de cair formolizado
numa cuba da REFRICORPOS

o professor de bigode depois dará uma entrevista no RJ TV
– estamos lutando para que o cadáver seja um material didático
como multimídia datashows giz…

estranho pensar num corpo como o seu
onde tantas vezes passeei os dedos os lábios
como parafusos
de aspirantes à ortopedia, mas
para saber a consistência de um menisco
o aluno precisa ver e apalpar

– o mais próximo do vivo ainda é o morto
– o nosso paciente é o cadáver

apenas um rapaz de avental e olhos puxados
percebendo talvez a minha aflição
ou vendo nascer da sua fronte coriácea alguma borbulha brilhante
inclina-se para assoprar quase
aos meus ouvidos

a vida e a morte não se meditam numa mesa de dissecação
é um mundo tudo tão tosco, não há sofisticação
instrumental nem para retirar um cérebro
– uma modesta serra de carpinteiro...

antes traziam muitos cadáveres como este
das colônias psiquiátricas
havia papa-defuntos aos montes
sem ter que preencher demorados autos de resistência
ou receber estes fâmulos da Anistia Internacional
enquanto separam a gordura e a pele
do abdômen do seu novo colega de quarto
(como naquele nosso livro incrível da Taschen)

pergunto-me se você, no meu lugar, doaria meu corpo
ou se contentaria em cremar
lentamente, umas palavras de amor.