SEÇÕES

Pixador, Grafiteiro, Muralista & a Espetacularização da Ocupação do Espaço Urbano

por Beatriz Fontes


 

     Para entender o conceito de Sociedade do Espetáculo, faz-se necessário, antes, debruçar-se sobre o termo “espetáculo”. Segundo o Dicionário da Comunicação, de Ciro Marcondes Filho, espetáculo é o “conjunto de coisas ou de fatos que são apresentados ao olhar do público”. Espetáculo é, portanto, o que atrai a vista e a atenção visual dos assistentes (MARCONDES FILHO, 2014). Não existe espetáculo sem o olhar.
Tal afirmação se reforça quando observamos a origem latina do termo: spectacùlum, que se traduz como vista, show, e, por sua vez, vem do vocábulo spectare, que significa ver (WAINBERG, 2010). A relação entre o espetáculo e a visão é intrínseca.
Sociedade do Espetáculo é a sociedade cujas relações sociais se baseiam na lógica do espetáculo, na qual tudo o que é diretamente vivido se esvai na fumaça da representação (DEBORD, 1997). “O espetáculo não é um conjunto de imagens, mas a relação social mediada por imagens”, afirma Guy Debord (1997, p. 14), escritor francês cujo magnumopus é a obra que trouxe ao mundo o conceito base para o presente artigo: Sociedade do Espetáculo, de 1967.
     O olhar do indivíduo vivente da Sociedade do Espetáculo é a todo momento, portanto, estimulado, ao passo que seus outros sentidos definham. É importante ressaltar, porém, que este não é um olhar reflexivo, mas vazio de compreensão do mundo. “Toda hipertrofia gera uma distrofia compensatória. Quanto mais imagens, menos visibilidade” (BAITELLO JUNIOR, 2014, p. 61). As imagens, num contexto espetacular, atuam na reunificação, sob a forma de aparência, de uma sociedade fragmentada (MARCONDES FILHO, 2014).
     O espetáculo, é, portanto, alienador, uma vez ao espectador cabe a função de assistir, não a de atuar. Inserido nessa sociedade, o assistente realiza produções alienadas de seu sentido (DEBORD, 1997): são significantes sem significados. A arte, assim, perde sua potência de luta. Entretanto, tal estado de arte acrítica e alienada não é absoluto, conforme citado por Coelho (2010, p. 74):

Para os teóricos da alienação, a possibilidade de se escapar dela depende do desenvolvimento de uma consciência crítica que resgate para os trabalhadores, mediante a ação política, a capacidade de serem sujeitos dos seus próprios atos.

     Sendo a arte, portanto, passível de voltar-se à luta e à política, como ela poderia fazê-lo e, principalmente, o que difere a arte crítica da arte espetacular?

Arte é política (?)

     A fim de que entremos na discussão acerca das diferenças entre pixação, grafite e mural, perpassando o documentário PIXO e os murais de Eduardo Kobra, cabe refletirmos sobre os limites da arte política na Sociedade do Espetáculo. É Jacques Rancière, no capítulo “Paradoxos da Arte Política” do livro O Espectador Emancipado, quem vai afirmar que ninguém resumiu melhor a relação paradoxal entre arte e política do que o poeta Rainer Maria Rilke, no poema por ele dedicado ao Torso arcaico de Apolo (RANCIÈRE, 2012).
     As últimas palavras do poema, que aqui são as que importam, dizem: “Nela não há lugar que não te mire: precisas mudar de vida” (Rilke, 1908 apud Rancière, 2012). A força do sentimento causado no poeta pela contemplação da estátua mutilada nos remete à potência política, que é também subjetiva, da arte: aquele que fita a obra é tomado pela necessidade de repensar e revolucionar a própria vida. Para o filósofo francês Rancière (2012), cujo trabalho se concentra sobretudo nas áreas da estética e da política, a diversidade de práticas e estratégias pelas quais manifesta-se a vontade de repolitizar a arte “não traduz apenas a variedade dos meios escolhidos para atingir o mesmo fim. Reflete uma incerteza mais fundamental sobre o fim em vista e sobre a própria configuração do terreno, sobre o que é a política e sobre o que a arte faz” (RANCIÈRE, 2012, p. 52).
     No decorrer de seu texto, delimita o lugar do qual parte para falar de política como um espaço de dissenso, de ruptura. “Ela rompe a evidência sensível da ordem ‘natural’ que destina os indivíduos e os grupos ao comando ou à obediência, à vida pública ou à vida privada, voltando-os sobretudo a certo tipo de espaço ou tempo, a certa maneira de ser, ver e dizer” (RANCIÈRE, 2012, p. 60). Quando a experiência estética também se apresenta como experiência de dissenso, ela é capaz de tocar a política, e de ser, ela mesma, política. A ideia de consenso, por sua vez, se explica justamente pela forma que se define o seu oposto. De acordo com Rancière (2012, p. 67):
     Consenso significa acordo entre sentido e sentido, ou seja, entre um modo de apresentação sensível e um regime de interpretação de seus dados. Significa que, quaisquer que sejam nossas divergências de ideias e aspirações, percebemos as mesmas coisas e lhes damos o mesmo significado.
     A potência política da arte, ainda segundo Rancière (2012), portanto, reside na ruptura da ordem e do senso comum. Para além de despertar naquele que contempla a obra o desejo por transformação, a arte política não dá margens ao consenso – talvez por ser o consenso oposto por excelência à transformação. Pelo contrário, ela aflora as diferenças de pensamento e as diferentes interpretações do mesmo objeto, observado muitas vezes pelo mesmo ângulo. Com base nas ideias sobre consenso e dissenso que expõe, o autor analisa a expressão artística moderna:

    O contexto de globalização econômica impõe essa imagem de mundo homogêneo no qual o problema de cada coletividade nacional é adaptar-se a um dado sobre o qual ela não tem poder, adaptar a ele seu mercado de trabalho e suas formas de proteção social. Nesse contexto, desvanece-se a evidência da luta contra a dominação capitalista mundial que sustentava as formas de arte crítica ou da contestação artística. (...) E a extensão da dominação capitalista global é equiparada a uma fatalidade da civilização moderna, da sociedade democrática ou do individualismo de massa (RANCIÈRE, 2012, p. 67-68).     

     Ainda em relação à arte moderna, o filósofo Jean Baudrillard (1990-1993 apud HOME, 2004a, p. 24) tece uma crítica à sua manifestação, mas de forma mais incisiva:     A arte moderna deseja ser negativa, crítica, inovadora e perpetuamente quebrar barreiras, ao mesmo tempo que é imediatamente (ou quase) assimilada, aceita, consumida, integrada. É preciso se render à evidência: a arte não mais contesta qualquer coisa. Se é que o fez.
     Tanto Baudrillard quanto Rancière são críticos e, de certa maneira, céticos, em relação às possibilidades políticas da arte moderna. Apesar de fazerem cada um à sua maneira, ambos embasam a crítica na experiência de consenso proporcionada pelas produções artísticas, sobretudo as mais recentes, que torna a arte passível de rápida assimilação e aceitação. Ou seja, que faz com que a arte exista dentro e a partir de um sistema de dominação capitalista, integrando-se a ele e impulsionando-o, sem um caráter questionador ou combativo contra esse mesmo sistema.
     Mesmo em meio a um contexto capitalista e, sobretudo, espetacular, algumas formas de arte mostram sua força política ao apresentarem alguma ameaça à ordem vigente. Stewart Home, o principal idealizador do Neoísmo, filosofia artística influenciada por movimentos de vanguarda, compilou em ManifestosNeoístas diversas produções de cunho neoísta. Entre tais obras, destaca-se um trecho que cabe para discutir o que revogaria à arte sua potência de luta no atual momento histórico e social:

Afirmamos que o plágio é o verdadeiro método artístico moderno. O plágio é o crime artístico contra a propriedade. É roubo, e na sociedade ocidental o roubo é um ato político (HOME, 2004b, p.24).

     Quando Home (2004b, p.24) afirma que “o plágio é o crime artístico contra a propriedade”, podemos expandir essa lógica ao pensar que plágio não é o único crime artístico contra a propriedade, mas o vandalismo também. Se plágio é esta configuração de crime, mas intelectual, o vandalismo é sua versão equivalente no plano físico. Em uma sociedade despedaçada, os valores se invertem e o indivíduo tem de ser um ladrão se quiser manter a honestidade (CRIMETHINC, 2013). Assim, a arte é crítica ao capitalismo – e, por conseguinte, ao espetáculo – a partir do momento que não apenas questiona, mas que desafia as imposições do sistema hodierno.
     É este o caso da Pixação de São Paulo, objeto de estudo deste artigo. Para além do caráter explicitamente questionador ao capitalismo, é importante, aqui, falar mais do que sobre um sistema econômico e ideológico, mas sobre as suas consequências práticas, que muitas vezes agem sobre a própria subjetividade do indivíduo, condicionando o olhar ao que foi estabelecido como belo e, consequentemente, vendável. A Pixação, como veremos a seguir, coloca em xeque o próprio conceito de arte e questiona a arte apolítica que serve como aliada do capitalismo.

Pixador

     Em 2009, João Wainer e Roberto Oliveira produziram o documentário PIXO, que remonta a história da pixação desde o seu surgimento na década de 1960 até os dias atuais, perpassando por todas as diferentes fases do movimento. PIXO é um dos únicos documentos que se propõe a salvaguardar a memória da pixação e, assim, é a principal fonte histórica utilizada como base para analisarmos a pixação enquanto movimento artístico.
     São três fases destacadas pelo fotógrafo Adriano Choque no documentário PIXO para delinear a história da pixação no contexto nacional. A primeira fase da pixação no país é a Pixação Política Contra a Ditadura, que começou nos anos 1960 e consistia em palavras de ordem escritas de forma clara, conforme observa-se na Figura 1. O principal objetivo era que qualquer pessoa letrada fosse capaz de ler o que tivesse pixado. A Pixação Poética sucedeu a Pixação Política Contra a Ditadura como a segunda fase da pixação nacional. De estética também legível, as frases políticas deram lugar a frases poéticas (PIXO, 2009), de acordo com a Figura 2.

Figura 1 – Exemplo de Pixação Política Contra a Ditadura.

Fonte: print screen de cena do documentário PIXO.


Figura 2 – Exemplo de Pixação Poética.

Fonte: print screen de cena do documentário PIXO.

     A terceira fase, ainda segundo Choque (PIXO, 2009), nasce na capital paulista durante a década de 1980 como um desdobramento do movimento Punk. Também de cunho político, a Pixação de São Paulo é um movimento artístico contracultura de intervenção urbana. Apesar de o ato de pixar – escrever nos muros com tinta – não ser propriamente brasileiro, a Pixação de São Paulo, da forma como se vê na Figura 3, é. Proveniente de zonas periféricas e de baixa renda, esta fase incorporou as filosofias anticapitalista e anarquista dos movimentos Punk e Hardcore.

Figura 3 – Exemplo de Pixação de São Paulo.

Fonte: print screen de cena do documentário PIXO.

     Além da ideologia, também a estética da Pixação de São Paulo foi inspirada pelas bandas que os precursores do movimento se identificavam. O pixador, para a construção de seu logo, a assinatura que vai representá-lo na cena da pixação, utiliza como referência visual a tipografia característica que os conjuntos de Rock e Metal empregam nas capas de seus álbuns. Esta identidade, por sua vez, faz uso das runas anglo-saxônicas como inspiração (PIXO, 2009) (Figura 4). “É impressionante como a escrita dos povos bárbaros de milhares de anos atrás migrou para São Paulo, para os povos bárbaros de São Paulo: os pixadores” (PIXO, 2009, 10min 24s – 10min 33s).

Figura 4 – Runas anglo-saxônicas.



Fonte: print screen de cena do documentário PIXO.

     Sobre esse fenômeno, conforme Pixo (2009, 07min 24s – 07min 36s), Choque, um narrador deste documentário, afirma que “a Pixação de São Paulo é uma comunicação fechada, é da pixação para a pixação. Então, ela, na verdade, não se comunica com o resto da sociedade. Ela é uma agressão. Ela é feita para agredir a sociedade”. De fato, o objetivo Pixação é a agressão, tanto por ser um crime contra a propriedade privada como por não prezar pela legibilidade. Entretanto, a defesa deste artigo diverge da opinião do fotógrafo ao passo que ele não reconhece a agressão como uma maneira de comunicar. Uma resposta agressiva é, também, – por que não? – uma resposta. A Pixação reflete a ojeriza da periferia frente ao restante da sociedade, ao capitalismo, ao governo. É a reação das classes mais baixas à violência a qual o Estado age frente a elas. Recusar-se a estabelecer um diálogo sob os termos impostos pela sociedade é uma forma potente de comunicar algo: que não se está disposto a negociar.
     Dessa forma, a sociedade enxerga a Pixação como sujeira e vandalismo, incapaz de reconhecer valor artístico no movimento. É nesta constatação que mora o reconhecimento da Pixação como arte política e não-assimilada. Se a Pixação agride o olhar, quem a compraria? Tal forma de arte não foi assimilada pelo capitalismo no Brasil e, por conseguinte, não foi espetacularizada. Assim, diante da discussão acerca da potência política da arte, reiteramos o lugar da Pixação de São Paulo como um movimento de luta. No entanto, seria possível vestir uma roupagem assimilável e comercial nesta forma de ocupação do espaço urbano?

Grafiteiro

     O termo “espetacularização” pressupõe movimento de um estado de não-espetáculo para um estado de espetáculo. Ao passo que a pixação é vista como crime, não-arte, e nega o diálogo com o governo e a sociedade, o grafite é o primeiro passo adiante da espetacularização da apropriação do espaço urbano. Ao passo que o grafite abraça o status de arte e passa a dialogar com o poder público em busca de aprovação, ainda tenta se vincular com “a rua”, como explica o pixador Ivson “Djan” Silva em uma entrevista concedida ao portal CatracaLivre:

Nós [os pixadores] queríamos atropelar tudo que fosse autorizado e financiado. Não tem como você correr com a polícia e com o crime, você tem que se decidir. Os caras [os grafiteiros] corriam com o Estado e queriam ficar correndo com a rua? O Estado combate a rua, irmão. Nossos interesses entraram em conflito. Por isso a gente separou o joio do trigo, rachou de vez (SILVA, 2014).

     Djan explica que o que fez com que o grafite perdesse o seu lugar como arte de rua e, para nós aqui, como arte política foi quando se tornou algo autorizado e comercial:

O grande erro dos grafiteiros não foi entrar para o circuito das galerias, foi quando eles fizeram o contrário: transformaram a rua em galeria. Foi quando eles começaram a ganhar para pintar na rua. E, aí, você está abrindo mão do que legitima seu trabalho, que é pintar na rua de forma ilegal, transgressora (SILVA, 2014).

     O grafite, assim, seria o processo intermediário de espetacularização da ocupação do espaço urbano, uma vez que tenta se encaixar no meio termo e acaba por não ser nem inteiramente política e nem inteiramente comercial. O estágio final deste movimento é o mural, que nega a rua e a ilegalidade em prol da mercantilização desta forma de arte. Para entender determinada maneira de produzir, cabe analisarmos as obras e a trajetória de Eduardo Kobra, famoso muralista da cidade de São Paulo.

Muralista

     “Quando tem permissão, é mural”1.Primeiro pixador, depois grafiteiro e, agora, muralista. A gradação é sintomática. A trajetória de Eduardo Kobra é a materialização do movimento de espetacularização pelo qual passa a pixação, que se torna grafite e, em seu estado de maior domesticação, o mural.
     Eduardo Kobra nasceu em 1976 em um polo artístico e econômico do Brasil: São Paulo, capital. A matéria de Carolina Cunha para a parte de artes do site Saraiva Conteúdo2descreve o início da carreira de Kobra: “Crescendo na periferia de São Paulo, Kobra segurou a primeira lata de spray aos 12 anos. Assim como muitos grafiteiros, começou pichando muros, muitas vezes com cal, fugindo frequentemente da polícia para não ser preso. Aprendeu a desenhar sozinho e, aos poucos, foi se envolvendo com o circuito do rap”.
     Periferia, polícia, rap: são palavras usadas no trecho e que em muito conectam os primeiros passos de Kobra ao cenário da Pixação de São Paulo. O texto ainda expõe que o trabalho do artista com o grafite, que começou pelos 15 anos, indicava forte influência de elementos do hip-hop. Em 2005, no entanto, o projeto “Muros da Memória” foi como um divisor de águas de sua carreira, quando começou a consolidar o estilo pelo qual é conhecido hoje e também a se enxergar como muralista.
     Ao ser questionado, em entrevista ao Edição Extra, da TV Gazeta3 qual a diferença em si mesmo a partir da passagem de pixador para grafiteiro e de grafiteiro para muralista, Eduardo Kobra afirma continuar a mesma pessoa. Ainda assim, reconhece uma diferença prática crucial entre as atividades: a ilegalidade da pixação e do grafite torna sua realização passível de prisão e outras formas de agressão.
     “Quando você tem permissão, você tem mais liberdade para fazer seu trabalho”, é a análise que Kobra emenda à resposta. A isso, soma-se outra análise sobre a própria trajetória: “Foi também uma mudança de comportamento, eu mudei a minha atitude em relação à cidade”. Ele coloca que época em que se dedicou à Pixação ou ao grafite foi seu “momento de destruir”, enquanto seu estágio como muralista é um “momento de preservar”. Kobra ainda lembra que já pintou salas de delegados, tem um painel dentro da Cavalaria da Polícia Militar no centro de São Paulo e ganhou uma medalha Anchieta4na Câmara dos Vereadores da cidade.
     Numa breve reflexão sobre o comentário, podemos retomar as ideias de Rancière sobre a potência política da arte para pensar sobre os efeitos de uma arte socialmente aceita e assimilada. Torna-se conflitante, então, o uso da palavra “liberdade” para referir-se a um modelo artístico que está à mercê da permissão. A liberdade artística de Kobra é condicionada. Cabe a nós refletir: se ele cruzar a linha da parede a qual foi determinada que deveria pintar, ainda estaria livre? A liberdade em um contexto capitalista, de fato, a liberdade que buscamos, ou que buscava Kobra quando era pixador?
     Na obra escolhida para análise neste artigo, Kobra aplica sobre uma imagem já famosa uma padronagem que lhe é característica. Com cores vivas e formas angulosas, o muralista pasteuriza as obras nas quais escolhe intervir. Assim, subtrai destas a bagagem histórica e cultural que cada qual carrega, suprimindo suas particularidades ao torná-las uniformizadas.
     A famosa fotografia intitulada “O Beijo” data de 1945, foi tirada na Times Square, em Nova York, e é de autoria de Alfred Eisenstaedt. A imagem retrata um beijo entre um marinheiro e uma enfermeira - as vestes de ambos, características das profissões, deixam claro. Atrás deles, várias pessoas parecem caminhar, outras pararam para olhar com encanto o beijo, e o clima de festa parece generalizado. O contexto da cena capturada é de comemoração pelo fim da Segunda Guerra Mundial. É, por isso, uma das mais icônicas imagens do século XX.
     Para além de seu caráter histórico, foi considerada por muito tempo, e ainda o é atualmente por parte das pessoas, símbolo romântico. Em 2012, com a publicação do livro The kissing sailor: the mystery behind the photo that ended World War II, em tradução livre O ladrão de beijos: o mistério por trás da foto que acabou com a Segunda Guerra Mundial, de Lawrence Veria, a imagem passou a ser observada por outra perspectiva.
 
     Conforme podemos notar na Figura 5, a expressão corporal de Greta Zimmer Friedman, a mulher que está sendo beijada, indica seu desconforto e vulnerabilidade diante do beijo. A posição e a força que o homem deposita em suas mãos para abraçar a mulher, aliadas à expressão rígida de seu rosto, reiteram que aquele não era um momento romântico, mas violento.

Figura 5 – O Beijo, de Alfred Eisenstaedt.

Fonte: Reprodução de websiteLeica Rumors5.

     “O Beijo”, de Eduardo Kobra, por sua vez, é um mural pintado na parede de um edifício dos anos 1930 em Manhattan (Figura 6). A obra promove uma releitura do icônico (e polêmico) clique de Eisenstaedt, trazendo-a para as cores e formas características do trabalho de Kobra. Durante as duas semanas em que foi produzido em junho de 2012, norte-americanos e turistas tiraram tantas fotos do mural que um funcionário da High Line, importante ponto turístico de Nova York de onde é possível ter uma visão privilegiada do mural de Kobra, ficou responsável por dispersar as pessoas a fim de evitar aglomerações no local.

Figura 6 – O Beijo, de Eduardo Kobra.



Fonte: Reprodução do Flickr do artista Eduardo Kobra6.

     Hoje a obra é cartão postal da maior cidade dos Estados Unidos da América e atrai turistas diariamente. Nesse aspecto, faz-se necessária a comparação dos murais com o pixo: enquanto o primeiro é agradável, procurado e popular, o segundo é socialmente repugnado; enquanto as tintas que compõem o primeiro são tidas como responsáveis por embelezar uma parede em branco, a mesma parede em branco teria sido considerada poluída se tomada pelas tintas de um pixador.
     Ainda que com uma pretensa política no sentido de preservar ou construir a memória, não há nada que permita o dissenso no mural em questão. As vestes da enfermeira preenchidas por triângulos em cores diversas e os raios igualmente coloridos e uniformes que saem dos personagens e ocupam todo o cenário não nos lembram da complexidade do momento retratado pela fotografia. Não nos lembram de coisa alguma, aliás. Os padrões reproduzidos por Kobra suprimem da imagem usada para a releitura todos os seus significados históricos e sociais; à nossa frente, apenas formas vazias.
     Assim, observamos que Eduardo Kobra não é mais que um indivíduo inserido na lógica do espetáculo, tão natural a sua obra. O caráter mercadológico de suas produções, somado à alienação de seu processo artístico e a transformação da imagem de si em também uma imagem a ser vendida são aspectos que denotam tal constatação. Isto mostra que a ocupação do espaço urbano, em si, não é política, mas a maneira como tal ocupação é feita é o que difere, como entende Silva (2014), o joio do trigo; a arte crítica da arte espetacular.A ocupação do espaço urbano não é, em si, política, visto que tudo produzido dentro da Sociedade do Espetáculo é passível de tornar-se espetáculo, se não sempre o for. Entretanto, dependendo da forma como essa ocupação se desenvolve e dialoga com a sociedade, ela pode, sim, ser uma ferramenta de luta anticapitalista e antigovernamental. Para tal, é preciso que duas características sejam presentes em tal forma de arte: a ilegalidade e a agressividade estética.
     A Pixação de São Paulo surge como uma arte política de ocupação urbana dentro do contexto brasileiro, ao passo que se nega a negociar com o poder público para continuar agindo de maneira ilegal e, como eles próprios defendem, transgressora. Também a estética da Pixação é propositalmente violenta, incômoda para o restante da sociedade alheio ao movimento.
     A pixação, entretanto, pode ser espetacularizada à medida que as características que a tornam política são subtraídas de seu fazer. Quando a arte produzida se torna palatável, agradável ao olhar, e permitida, legal, ela se torna vendável. Quando a arte é mercadoria, ela deixa de ser política.
     O Grafite é o segundo momento da espetacularização da arte urbana, quando os artistas passam a dialogar com o poder público e mercantilizar o trabalho que eles produzem na rua. Na lógica de ocupar o espaço urbano por meio da tinta, o Mural é o ápice da espetacularização. O Grafite ainda busca se comunicar com a Pixação, enquanto o Mural nega todo e qualquer vínculo com a rua, hierarquizando tal forma de produção artística e se colocando no topo.
Eduardo Kobra é objeto de estudo do presente artigo pois carrega em sua própria trajetória o movimento da espetacularização, e utiliza-se da gradação “pixador, grafiteiro, muralista” para marketing pessoal, com o intuito de que não apenas sua arte seja comercializada, mas também seu nome. Ao estudar o percurso de Kobra, percebemos que o espetáculo tudo permeia e tudo é capaz de assimilar. Cabe a quem produz a arte o processo incessante de autorreflexão para que não se torne mais uma peça no sistema que pretensamente critica.

 Referência

BAITELLO JUNIOR, N. A era da iconografia. 2014. Disponível em:
<https://books.google.com.br/books?id=Swa6DAAAQBAJ&hl=pt-BR&source=gbs_navlinks_s>. Acesso em: 12 nov. 2016.

COELHO, C. N. P. Enciclopédia intercom de comunicação: volume 1 - Conceitos. 2010. Disponível em: <http://www.ciencianasnuvens.com.br/site/wp-content/uploads/2013/07/Enciclopedia-Intercom- de-Comunica%C3%A7%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2016.

CRIMETHINC. Porque amo roubar – Dias de Guerra, Noites de amor. 01/09/2013.
Disponível em: <http://pt-br.protopia.wikia.com/wiki/Por_que_amo_roubar>. Acesso em: 02 dez. 2016.

DEBORD, G. Sociedade do Espetáculo. ebooksbrasil.com. 2003. Disponível em:
<http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/socespetaculo.pdf>. Acesso em: 22 nov. 2016.
HOME, S. Greve da arte: Manifestos Neoístas. São Paulo: Conrad, 2004a.

HOME, S. Manifestos Neoístas: Greve da Arte. São Paulo: Conrad, 2004b.

MARCONDES FILHO, C. Dicionário da Comunicação. 2. ed. São Paulo: Paulus,2014.

WAINBERG, J. Enciclopédia intercom de comunicação: volume 1 - Conceitos.2010. Disponível em: <http://www.ciencianasnuvens.com.br/site/wp-content/uploads/2013/07/Enciclopedia-Intercom-de-Comunica%C3%A7%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 12 nov. 2016.

PIXO. Direção: João Wainer; Roberto T. Oliveira. Brasil: 2009, 61 min, color.Disponível em: <https://filmow.com/pixo-t51464/>. Acesso em: 22 out. 2016.

RANCIÈRE, J. O espectador emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.

SEVERINO, A. Metodologia do trabalho científico. 22. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2002.

SILVA, I. O pixo é o que tem de mais conceitual na arte contemporânea. Catraca Livre, 28/11/16. Disponível em: <https://catracalivre.com.br/sp/arte-edesign/indicacao/ o-pixo- e-o- que-tem- de-mais- conceitual-na- arte-contemporanea-hoje/>. Acesso em: 05 dez. 2016.

1Fala de Eduardo Kobra em entrevista para o Edição Extra, da TV Gazeta. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=hW1_xi-dtOg>. Acesso em: 05 dez. 2016

2Disponível em: <http://www.saraivaconteudo.com.br/Materias/Post/46117>. Acesso em: 05 dez. 2016

3Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=hW1_xi-dtOg>. Acesso em: 05 dez. 2016

4A medalha Anchieta é a maior honraria da cidade de São Paulo. O prêmio (sempre acompanhado do Diploma de Gratidão da Cidade de São Paulo) é concedido a personalidades e a instituições que, por meio de suas trajetórias, conquistaram a admiração e o respeito do povo paulistano

5Disponível em: <http://leicarumors.com/2013/04/22/alfred-eisenstaedts-leica-camera-and-kiss-in-times-square-photo-up-for-sale.aspx/alfred-eisenstaedt-kiss-in-times-square-photo/>. Acesso em: 02 dez. 2016.

6Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/studiokobra/7380081384/>. Acesso em: 02 dez. 2016.