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[6 poemas]

por Anelise Freitas


Canto XV

a) o ataque ao estado
“os filmes não são lentos,
os filmes impõe uma temporalidade”
, dizia

no jogo de resistência
– rolando –
é preciso aprender
a parar

b) o ataque à família
tem livros que te pedem para ir
de
va
gar

a obra de arte lhe impõe um tempo

c) o ataque à religião
tudo opera
numa temporalidade
“a vida necessita de pausas”

 

Canto XXX (ou conto sobre a medusa protegida por são brás)

criamos cobras em cativeiro
a da cabeça azul, outra
vermelha e o charuteiro maluco
aquário diferente escolha

criamos cobras em cativeiro
para impedir que elas nos piquem
com os dentes venenosos
que nós mesmos imaginamos

criamos cobras em cativeiro
para garantir que quando lhes pisemos nas cabeças
o passo do pé seja certeiro
embora o corpo finja-se completo

pisamos nas cabeças das cobras em cativeiro
para assegurar o fim de seu veneno
e evitar que rastejem até nossos pés
pisamos em suas cabeças

as cobras em cativeiro têm cabeça dura
mas nossos pés são fortes
e depois de pisar ou sapatear sobre suas cabeças
vemos o veneno escorrer

criamos cobras em cativeiro
obedecendo a lei do mais fraco
mas, de pé, vemos aquela cabeça
e pisamos

criamos cobras em cativeiro
porque sabemos que elas rastejam
e ao mínimo descuido pisamos em suas cabeças
que escorre veneno sem efeito

criamos cobras em cativeiro
porque elas rastejam pelo chão e
seu veneno não atinge nossas veias
porque pisamos em suas cabeças

criamos cobras em cativeiro
porque somos medusas
não rastejamos pelo chão
e ninguém pisa em nossas cabeças

criamos cobras em cativeiro
serpentes verdadeiras e o paraíso
ou a anomalia e o meu
pescoço e a cabeça que não cai

criamos cobras e pisamos
em suas cabeças porque
criamos cobras e elas nos picam
e pisamos em suas cabeças

criamos cobras em cativeiro
e seu corpo é rabo e de pé
e sua cabeça na altura de nossos olhos
e as mãos apertam suas cabeças

enquanto seu sangue e veneno não significam nada

 

Canto XXVI (ou texto da aliteração velar-oclusiva I)

quando o gato das cordas gastas
pede no cantinho gemido
do ouvido um gesto me distrai
pegaria o resto e o registro
e rasgaria todas as fotos
gritando tus bolas batendo
guá! a onomatopeia ve-
lar e oclusiva enquanto eu pango

 

Canto XXVII (ou texto da aliteração velar-oclusiva II)

sente enquanto cresce e não tem fim nem pingo
nem ponto nem garantia de que transformar um poema
em uma coisa capenga será extraordinária não garantimos
nada pra hoje gangue gago gota galinha e o paralelismo
de um poema é quando as sílabas apagadas ganham equilíbrio
aliteração e assonância = rima
ainda pingamos um pagode aqui
e outro em pindamoguangaba ou
pasárgada mas é preciso que rime, rimemos
riremos (muda o verso)

 

Canto XXVIII (ou texto da aliteração velar-oclusiva III)

pego um pequeno adendo pra dizer.
diga. digamos que: eu tenha nutrido amor por poeta
e amar é muito mais que corpo, é presença e gosto ainda
de você
enquanto chora,
talvez entre aquele cigarro e o agora
o mundo tenha acabado
e eu nem vi.

 

Canto XXIX (ou texto da aliteração velar-oclusiva IV)

e se eu te dissesse que amo você
que amo a maneira como aquele corpo
se move quando encontra música
que amo o rosto da menina portuguesa enquanto
sorri ou acende um cigarro
(que eu sei, eu estive lá,
eu precisei sair pra encontrar aqueles lábios)
que amo observar as costas
nuas da menina que pratica meditação
que eu amo aquela que dança sobre
a mesa ou veste maiô tatuagem
que eu amo a garota que transforma e
gerencia as coisas e tudo garante engaveta-se nela
que amo também a tua forma
irônica de encarar a vida não
porque eu admire ou me complete, mas
porque é uma forma criativa de ver a poesia
na sujeira dos sapatos que te acompanham
e os críticos guturalmente preveem crise no
pós-guerra