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[4 poemas]

por Carla Diacov


 

x
temos uns sobreviventes
uns afetados de sol
uns afetados de vida ainda
uns afetados de mais
uns afetados e uns contorcionistas
enfim temos sobreviventes
sujeitos ao suor que é digno da sobrevivência
temos dignos também
uns afetados de casacos da pele de orlando
a janela imortal
a cancela imoral
uns afetados de manteiga de cacau
uns afetados de céu e de agulhas
entre uma orelha e outra agulhas magnéticas
guelras amanteigadas e agulhas
uns afetados de glândulas
glândulas inflacionadas em credos
mas temos sobreviventes
uns afetados de formol
temos uns sobreviventes ainda que não
mas temos o afeto e temos o formol
homem
temos o afeto e temos o formol

***

x
respirar assim pelo risco da boca
ajeitar o chapéu assim
com a colher lambida
chorar assim de lágrima estendida
palitar o vão da mesa assim
assim descascar a capa do livro
assim dançar um ombro só assim
comer fios-de-ovos assim
com a cara lambida de sol lambido
assim
pagar a conta com tampas de caneta bic verde
é uma sobrevivente
sair assim como se não saísse
encharcada de sépia e sangue
deixar o ar fedendo a desobrigações com o próprio
e qualquer outro fôlego
pagar a conta com tampas de caneta bic verde
carregar dali qualquer outra impressão
descarregar dali qualquer outro senso outro rato
sobreviveu ao mundo para
respirar assim
pelo risco da boca
no más que eso
não mais que um cão

***

x
porque tem razão nenhuma
a lesma arrasta a calçada mais para cá
perto do coração sobrevivente
junto do tórax morto
debaixo dos olhos dessas e dessas testemunhas
com o planeta como mesa
um pinheiro como sacerdotisa
sol
como evidência e convenção
a lesma arrasta a calçada mais para cá
perto do último apito do coração
debaixo dos olhos amorosos não indulgentes
dos sobrevivos últimos apertos de mão

***

x
ainda existe um forte
após as grades estão as linhas das sombras
do sobrevivente que lá
já não está
vou lhe explicar
estou comendo uma maçã muito saborosa
estou lhe dizendo que estou comendo a maçã
sei que você me vê comendo a maçã
talvez o cheiro talvez a baba o sangue uma
gota da fruta
correndo minha perna
a marca dos meus dentes o estalo
talvez
como você me conhece bem
uma minha maníaca mandíbula
talvez eu tenha cuspido as sementes no bolso do seu casaco
eu que também a conheço um tanto
sei a cor do casaco da maçã e do chapéu do
sobrevivente que você vê
sei o musgo por dentro das linhas
antes das grades
ali no forte
que você vê
eu vejo o nada estou cega de amor

vou lhe explicar
você não incide
o forte ainda existe