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[4 poemas]

por Marina Dubia


Lugares onde dá para ver paisagens

nos amontoados de cristal dos açucareiros;
na verdade, em tudo quanto é amontoado

nos remendos, drapeados e amassados das roupas e tecidos
também nas estampas;

nos olhos nublados da criança enfaticamente preguiçosa da oficina de teatro
matriculada por desejos alheios;

nas sombras dos móveis e nos móveis
no meu quarto;

na estrutura de poderes do governo democrático;
no mapa de relacionamentos do Beto, meu vizinho gato, e seu gato
nas manchas no lombo na cauda;

nos veios da madeira e nas pinturas chinesas
(nível fácil);

no desenho das lombadas dos livros na biblioteca
também dentro deles;
nas lombadas secas do seu beijo
                (próxima vez,
                 lembrar de trazer lipbalm);

no lance de dados jogado ao acaso;
na janela indiscreta do prédio ao lado;

nas montanhas russas!

nas rugas da minha mãe nas pessoas que passam na rua
creio eu
que pessoas passam na rua
em tudo que tem
anos
distâncias e
aproximações bruscas e tudo que
podemos cismar com cambaleância e manipular e nossa vista
vira uma faca de dividir e espalhar

as pessoas todas
tem cara de paisagem.
mas é só isso;
nosso olhar
volta para a casca
olha detrás dos olhos
faz de tudo
tudo
tudo
plano de fundo
e atravessa faz futuro.
intempestuoso.

passeia os sulcos hastes
naquilo que há de súbito;

na errância das larvas em água parada;

nos fumos-fiapos da superfície das coisas;
nos microssistemas de briófitas;
na retícula da ficção;

nestas letras. já que
é este o objetivo


(o segredo é olhar muito de perto ou muito de longe
sempre dá certo)

***

beijo abraço e desmantelamentos (paisagem marítima)

O mar, igualmente
não teria palavras para mim
hora de admitir:

nossos futuros divergem
não somos do mesmo mundo
nossos interesses dissonantes
incompatíveis em escala e número
é possível?

muito difícil
desgastante sonhar
aquém do alcance
de imagem e ação.

Então, desculpe, mar
meu mar

mas acaba por aqui.

Na risca da beira desenhada
pela evaporação dos vícios
seus viços
meus

Para eu, para nós
la humanitá
(o que se seguem são palavras
podem anotar
            de conselho,
            de amigo:

Hora de nos cercear
pelas nossas medidas
coisas palpáveis, sólidas
que cabem na vista
que dão para abraçar com a mecânica dos ossos

           por exemplo, uma catraca

e que podemos movimentar
para cá para lá
sem nenhuma ameaça.

Matérias maleáveis para dedos e dentes
também coxas
que não se estendem não se alongam
que não demoram muito e conhecem no miolo no cerne no mundo
modéstia e certeza
ser o que se é

         por exemplo, peras em calda

todos os anos
a limpidez e a brandura
de uma linha reta, dura
utilitária

é neste plano que opero.

          por exemplo, uma mesa projetada
          por um escritório paulistano fundado nos idos setenta
          incorporando os princípios modernistas
          inda hoje vigentes

que operarei.

Tudo vale a pena quando a alma não é pequena.
Mas a alma
para a alma tem uma régua certa.
Então me des
                peç

***

À esquerda no chances taken

era o amor de sua vida
jogado num deslize fácil
olhos de carteado
e se reviram

O quarto pergunta:
- pra que isso

quatro cantos desfocados, espia
tédio, uma impaciência
uma foto borrada sob o suor do dedão
não parou
nem olhou
à esquerda
mais uma mancha humana que desaparece
sem mensagens, sem vibrações
(não sente nada)
e mais um e mais outro
sem iluminação apropriada
aparelho de ponta
ou sorriso colgate
os que viajaram para a Europa
só não
descartados ao abismo
instantâneo
delicioso

inquisição da ansiedade cansada
uma mão frouxa
um coração trouxa.

***

o que se diz baixinho ao telefone

com o uso diário
desgasta
o que poderia ser adquirido
uma
talvez duas
apenas uma vez na vida

se lhe apetece
gosta muito
mesmo
lembre-se disto,
o próximo não será
mesmo
tanto quanto mais goste
tanto quanto mais use
não será o mesmo

recomenda-se cuidados
polimento e limpeza
com frequência moderada
também assim
o desgaste se intensifica
cuidado
com as ferramentas
que escolher

sempre que possível
guarde longe do sol, em lugar seco,
e fora do alcance de crianças

a manutenção eterna
preservação e perseverança
não estão inclusos na garantia
(antes que qualquer um se dê conta
já venceu)

recomenda-se
guardar numa gaveta

tenho uma gaveta no espaço
entre cada costela