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[4 poemas]

por Cecília Donateli


Como se acendesse uma fogueira

abro o átrio
deixo navegar o relâmpago
pelos pélagos do corredor
exponho ao sol
esta casa cheia
de estilhaços
passo os dedos
pelas esquadrias
dou-me conta dos filões
apolíneos de luz
marchando pela cozinha
penso em todas as formas
de quebrar a lógica
         dos azulejos
aprendo o idioleto
secreto da cal
ensino ao tórax
a espera
meu plano-piloto era
gritar evoé
e confluir

confluir
gritar evoé
meu plano-piloto era
a derrocada
aliviada, ensinar ao tórax
os segredos da cal
o idioleto
que sei falar nasce do peito
cárstico, exposto
pelos pélagos do corredor
abro o átrio
no verão
deixo navegar o relâmpago
como se acendesse uma fogueira

 

 Ligamento

Hoje eu lia
uma e mais uma vez
a camiseta do Jeff Buckley
raw power can destroy a man
que é, na verdade, um verso dos Stooges
de quem a canção que mais gosto é Gimme Danger
e isso de vez em quando importa
entre as             miríades
Mas sobre a frase na camiseta do Jeff
que em uma primeira circunspecção
pode dizer muito sobre amantes,
políticos, profetas, super-heróis, dândis e reis
Mas que em uma circunspecção mais disjunta
pode dizer muito sobre a luz
pode dizer muito mais sobre os farelos do cometa Halley
e o fato de serem menores do que nós
que somos grandes [rs]
É o mesmo que dizer algo
sobre a dialética da espingarda
o sustentáculo da farda e a mordaça
melindrosa d'alguns dias
Hoje eu lia a camiseta do Jeff Buckley
que cantando Aleluia ainda quebra meus joelhos
e pensava é hoje é hoje que vou-me embora
fazer uma casa no topo d'uma fajã
porque na beira das coisas
é tudo muito mais recíproco
E isso em algum momento é poesia
E o que é a poesia
se não os olhos de Deus
cegos de luz,
Jeff?

 

Bancada

A bem da verdade, Ademir, a questão é mais simples
do que parece. O gambito – já sabemos –
é fazer com as mãos em concha,
debaixo do chuveiro, um maremoto inteiro.
Diluir quase tudo no vão das coisas insofismáveis
que são, obviamente, uma garrafa de Bushmills
e um beijo. O desfecho
de um samba lúcido & leso que não dá certo,
mas que dá sempre certo.
Abrir o peito e fazer pontaria num espelho d'água.

 

Aqui naquela selva

Vez ou outra, salvavam-se.
Lavavam-se os pêlos faziam-se
sargês arreio plêiades fitas de algodão
a retroprojeção de todos os dias
telúricos, hiper-reais à la
Baudrillard
Como se Cesária Évora viesse cantar
Petit Pays bem no nosso quintal
de pés descalços terra mato
& limoeiros
Como se por exemplo no nosso petit
país
 fôssemos todos nós os últimos
mendigos de gravata
falhas luminosas
Tupãs
E Deus fosse ao invés um cordelinho
o caminho de arrimo refletindo
o sol.