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[3 poemas]

por Raquel Gaio


 

sou continente que não chegou a nascer
feto estancado tristeza dos pais
pântano onde todas as águas se misturam.

tenho dois pássaros presos no centro do meu diafragma
eles mastigam um novelo vermelho que nunca acaba
no corpo deles, a fome dos séculos.

você poderia me falar da profundidade dos oceanos
de como ele é tão precipício como nós, mas não
de ti só sei da água parada que adoenta meus pés.

fiz emergir 23 fendas em meu corpo
exibo uma nova tatuagem no braço direito
não sei quantas ainda estão submersas
mas sei que hoje o dia amanheceu com um sol forte
e isso era tão previsível quanto eu
quanto a fome no centro do meu diafragma
quanto o vermelho que encobre os pássaros.

                                        ***

 

trago em meus joelhos
o testemunho das quedas passadas
e os olhos enfermos da noite

sou uma saudade envelhecida
onde deuses construíram um abismo

cada músculo do meu corpo
é uma ilha feita de cicatrizes
todas banhadas na nossa antiga desordem

as sílabas destes versos ainda chamam teu nome
vocábulo feito guilhotina escrito na calçada de casa
tumor animal que não curei

que fiquei com tua mandíbula irrepetível em meus seios
estou sempre onde poderia ter sido

o meu sangue, uma geografia acidentada
onde eu mesma mal respiro
onde, na tontura, transbordamento e vazio
se confundem

a cada noite eu temo que não amanheça
mas há pássaros que cantam no meu temor
sinto que estou grávida de tantos sóis

não importa como, sempre haverá a queda
cancro que nunca sara, nunca se despede

ontem a noite,
martelei uma Olivetti até que nela aparecesse minha própria ruína
sei que agora posso ser noite sem o terror de doer.

                                        ***

 

estou aberta e sem retorno
há um animal que rasteja em direção as minhas ancas
estou aprendendo a morar com o tempo entre as costelas
aprendendo sobre o escuro e não sentir sua faca
sobre a morte da noite e mesmo assim não partir
sobre o deserto que os dias trazem
e dos delírios que isso causa em minha língua.

sei que existem alturas entre nós, mas agora não há mais jeito
pois já sou um animal

estou aberta e sem retorno.