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[7 poemas]

por Victor H. Azevedo


bom

você narrando a periculosidade
de dormir embaixo de um pé de jacá
em um lugar nunca antes ocupado
a não ser
pela língua pendular dos bois
e da camuflagem da sua infância

dissertando sobre como o sol ali
é cáustico e serelepe
e como as árvores são talvez
a única presença materna que temos para nos aninhar
e nos pôr para cochilar após uma guerra.
uma guerra que nos golpeia sempre que abrimos
os nossos olhos de leopardo e olhamos para o telhado
e dizendo:
“bom, as paredes
dessa cabeça
ainda não caíram”

você envolvendo minhas mãos em concha
como se elas tivessem algum valor em quilates
e dizendo que nós nascemos como bocas nômades
que viver por metro quadrado é querer minguar
toda a nossa essência de girassol a relampejar
e que este sim talvez seja o medicamento ideal
para tratar dessa minha lonjura inenarrável
e voltar a sentir meu peito como uma gaiola destroçada.

***

oi basquiat

vamos fugir do velório que é morar nesse condomínio. tatuar nos muros
dos órgãos públicos nossos anseios pestilentos que os sensíveis chamam
de sentimentos mas nós chamamos de química. vamos, sem
qualquer grande heroísmo, entrar em um bistrô cinco estrelas e vender
nossos escárnios aos fregueses assépticos e de unhas aparadas. subir
no palanque e berrar: esta realidade não alucina os ossos de
ninguém e depois beijar a primeira-dama e sumir com a certeza de um
trabalho cumprido. vamos ter trinta e dois dedos na boca. dormir na
varanda de frente pro oceano da casa de um novo
conhecido amigos de uns amigos e acordar com os raios de sol
esfaqueando nossas pálpebras. vamos conversar com nossas
corujas sobre a mesma merda de sempre. misturar fumaça com a
sonolência dos pés. enxergar no azul do céu a crista de uma onda e um
surfista que soube domá-la. fazer uma pintura primitiva no rosto de nossa
madona. vamos ser crianças radiantes. vamos caminhar longe dos poemas
herbívoros e com olhos de celofane para então
morrer elegantemente abraçado a luz do meio-dia
a luz do meio-dia.

***

pequeno texto para ser executado em uma cozinha às 22h40

as baratas são minhas companheiras, minhas comparsas. elas que acompanham
minha estadia insone, quando me levanto sem conseguir coagular meus sonhos
e venho até aqui beber um copo d'água, ver se os consigo diluir, mas isso nunca
curou nada, só faz com que os sonhos fiquem boiando, flutuando até que toda
essa água evapore ou escoe por você-sabe-onde. devo dizer que no início de
tudo, eu tinha medo delas, das baratas, perambulando sobre a mesa, já
arquitetada para o café da manhã. pegava um chinelo e matava uma, duas, às
vezes cinco baratinhas miúdas, com as asas pintadas de ouro e carvão. é, a vida
não é lá um reinado deixado por um deus aposentado, somos só nós
convivendo nessa gigantesca caixa de areia.

dou nome a todas elas. mas também não sei se são elas, exatamente as mesmas,
que aparecem aqui toda noite. tem a lucrécia, albertina, estrogilda. em alguns
momentos venho aqui esfomeado e dou-me ao luxo de pegar um pedaço de
pão, uma fatia de pizza, sem escovar a dentadura depois, e deixo uns farelos
para elas num castelinho que fiz com palitos de picolé. maricleide, roseana, tem
também a marilou. desisti de matá-las pois afinal não sou o predador natural
delas nessa cadeia alimentar, e sim as lagartixas que, penso eu, estão confinadas
em algum ninho cimentado desta casa. então somos comparsas, eu não as
perturbo, e nem elas me atazanam a fim de mordomias e afagos.

quando eu deito de novo, ainda com a cabeça inundada, alagada, sopa de
quimeras se diluindo, fico pensando na wagnolia, na eriberta, na reginanda,
pensando sobre como funciona o idioma delas, se elas são telepatas ou utilizam
um tipo de linguagem de libras com as antenas e as patas para se comunicarem.
talvez a frequência de suas vozes seja tão tão ínfima que somente as lagartixas
mesmo as podem ouvir e as caçar. bobas, idiotas. nunca vou entender como
essas pequenas criaturinhas morrem para uma lagartixa, mas não sofrem nada
com a radioatividade que flui do meu peito.

***

aquele dia em lugar nenhum
quando te falei que meu santo
já não era mais aquela colina
minha mão cerúlea apontava
para certas palavras difíceis
e as sirenes da polícia exalavam
um aroma de framboesa no ar.
Um desconcerto de neurônios
me aperreava como os colegas
que me puxam para pirotecnia
e querem minhas costelas cruas
e então quando fujo, sinto o zelo
do ônibus em me abraçar.
a sinfonia luzindo espalhafatosa
esparramando a morte
das tuas pequenas estrelas
sobre as pedras desta rua onde respiro.
fagulha que nasce somente para suspirar.
do trovão é que surge essa ansiedade
que por antecipação dedilha
em cada batimento cardíaco
um tal tremor inaudível,
uma tal locomotiva atrasada.
é selvagem a sinopse
dos próximos dias aqui.

***

esse sentimento pueril enquanto se aguarda
por um desastre maior na vida dessa rua:
a mãe carregando o filho pequeno
no colo e vestindo uma camisa da branca de neve
com o cabelo cravejado de lantejoulas.
um velho entrando no ônibus vestindo uma camisa
de flanela com alguns botões faltando como se
houvesse acabado de escapar de um tufão.
o avô que nunca tive sentado na porta da padaria
com a pança a mostra e com um quepe de marinheiro
saudando os ônibus que passavam.
um doido querendo atravessar a rua, usando
como cinto a fiação de alguma linha telefônica.
alguém que já conheci dançando uma música
hipotética no meio de uma reserva florestal.
alguém que conheço mas nunca abracei posando
junto a um mural com o desenho de um pato donald
lisérgico, com olhos cartunescos derretendo
na métrica de um relógio atrasado.
uma senhora franzina, com mais território
nas olheiras do que nos olhos, pedindo esmola
no ponto de ônibus vestindo uma camisa
que nela tem escrito: live fast die young.

***

estas são minhas últimas moedas. não desconheço o risco que corro ao lhe
pagar meu último tostão para tentar desaparecer com minhas tempestades por
uma fração de primavera. sei que caso eu morra aqui nesse tempo que decorre
ao passo da minha fala ou da nossa quietude não terei como molhar a mão do
caronte para que ele me carregue em sua barca e me hospitalize seja onde o
destino quiser. sei também que caso isso ocorra eu ficarei algemado a uma
infinita dança de cadeiras. mas não me mordo por causa disso. por certo tu não
queres um espírito habitando sua locadora. mas lhe confirmo: se eu sentir
algum órgão meu travar ou qualquer ocorrência relacionada durante a
jogatina (olhos tiquetaqueando sangue engrossando articulações
desmanchando fumaça saindo das narinas) saio correndo para o lado de fora e
faleço na calçada mesmo quem sabe até na esquina ou com uma sorte
derradeira eu desabe ao lado de uma cerejeira e ai não seja necessário um
funeral: basta que recolham meus grãos e o depositem debaixo das sandálias da
tal cerejeira. prometo ser um fantasma discreto e benevolente se morrer em tal
lugar. agora por favor: põe duas horas no super nintendo que’u quero esquecer
da minha vida.

***

pois então é isso que herdamos: uma amnésia
podre que nos fez querer metralhadoras
entaladas novamente em nossas gargantas.
apagaram todos os punhos pintados nas
muralhas e os substituíram por serpentes
que vem escalando nossas colunas vertebrais
em busca de alguma fruta cerebral. agora preciso
adotar um novo método para conversar
à longa distância com meus dilúvios
emancipados sem que um cutelo emerja
da minha própria roupa e decepe minha língua
e polua meus olhos e arranque minha mandíbula
para fazer uma coroa ao tal novo czar. a lucidez
passeia distante sobre a astrologia dos automóveis.
esse oxigênio faz realmente bem as flores?
a impressão é de que o júri é formado
de saliva furiosa e que ela se derrama até alagar
nossos ouvidos com cifras ossudas.
existe um incêndio clandestino ardendo
em todos nós. não me convidem para essa festa
regada de hinos de grosso calibre e anedotas
de furacões idosos. quero descer desse corpo
porque já não sei mais se ainda sou
feito de grãos de areia
ou de pólvora.