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[1 conto]

por Mariana Lozzi


panóptico, o olho de deus

O corredor vazio refletido na retina de vidro, nenhum tremor anunciado. As bordas arredondadas chamavam o granito à coisa viva. Era como se, ao olhar através do olho mágico, fosse possível espiar a boca de um animal primitivo e ver o trânsito de presas. Tudo isso a Cicinha observava com a respiração curta, o olho encapsulado girava em encantamento grosseiro e a realidade revelava fragilidades de papel, firmava-se em dobraduras. Do lado de cá da porta, a tarde úmida espalhava sombras sobre os armários de laca, o apartamento nunca foi tão impessoal. “A faxina se deu num gesto de amor”, pensou a mulher, e aos seus braços o chão se moldou até refleti-la inteira.

Quando trotava de tamancos na cozinha, apressada para atender ao chamado dos filhos, embarafustados uns nos outros, ou do marido, absorvido pelo noticiário, a Cicinha ouvia som idêntico ao estalar de uma língua dentro de uma boca asséptica. Tão dela, o apartamento, que pensava nele com a mesma intimidade com que pensava no próprio corpo. Sentia secreto medo de habitar em ambos, mas sabia que eles não deixariam de sê-la. 


Era uma vida em que ela cabia sem sobra, o corpo grosso trabalhava como tapume para as desaventuranças, protegia a família com mãos que nunca tombavam. Funcionava assim: o sonho último da Cicinha era o primeiro gesto do lar. Cuidava para que, todas as manhãs, o Otávio e os meninos tivessem meias limpas nas gavetas e copos de leite a aguardá-los na mesa, prontos para ir ao encontro das bocas, como se, naquela casa, os objetos se movessem por encantamento barato. Precisavam dela, mas não calculavam o quanto, porque seria necessário que fosse chamada ao ventre da terra, morada última dos homens, para que percebessem que, durante toda a vida, aquela mulher lacrou segredos em conchas e as pendurou nas orelhas, para que os brincos falassem-lhe do mar.

Ela gostava de ter a gola da camisa umedecida por suor que fazia a pele luzir morena, sentia-se bonita e opulenta quando a janela soprava mornidão lar adentro. Mas o dia continha horas demais, algumas muito perversas, nas quais ficava incapaz de sair do apartamento, como se, assim, perigasse sair do próprio corpo. O desalento começava quando a luz se derramava rasteira sobre o assoalho e tinha início à hora mais escorregadia, aquela em que os filhos e o Otávio estavam longe, cumprindo as competências de meninos e homens, e nada demandava  seus cuidados, nenhum tremor anunciado.

Assombrada pelo silêncio das vozes e das panelas, a Cicinha corria até o olho mágico cravejado com modéstia abaixo do número 204 e colava o rosto na porta. A língua vermelha, gatilho da mandíbula, coiceava o céu da boca, as narinas fremiam e as mãos se fechavam tenras sobre a madeira. Nas pontas dos dedos palpitavam os salmos da infância e ela mesma se transformava em oração.

Pinta de vidro em corpo de cimento, aquela era uma brecha para vidas outras, uma lente de contato que dotava de opacidade o volume dos sonhos e contornava o corpo difuso dos pesadelos. Quando a tez da Cicinha encontrava o olho mágico, fendas, rachaduras, e vincos se abriam, e um mel escuro escorria descompensado diante das vistas da mulher, conferindo transparência de vidro sujo à nova realidade. Serena e soberana, ela via.

A mania de espiar as visitas começou na tarde em que foi deixada tempo demais com a sua imagem refletida no chão da cozinha, espelho que a mirava pelas ancas. Estava, pois, metida em um transe sorumbático, a observar os mergulhos de uma libélula, quando a campainha tocou. Sem resposta, voltou a soar uma, duas, três vezes. A visitante esperou por boba persistência, sem saber que, do outro lado da porta, mãos quentes fechavam-se tenras sobre a madeira, em prece.

Através do olho mágico, a Cicinha reconheceu o rosto da irmã, distorcido e repuxado pela lente de vidro até fazer a imagem de uma cabeça de cavalo, com o focinho projetado e olhos em negritude aquosa. Ela prendeu a respiração e levou as mãos à garganta, tomada por magnífica náusea. Justo a Leomara, que nunca admitiria que o rosto bonito se tornasse molde para focinheira, metamorfoseou-se em animal de tração, dado a ruminar capim e a carregar quem lhe tomasse as costas. Gaiata, divertia-se com a sina de bicho da irmã, como se em besta faz de conta, brincadeira das duas, mas a graça cessou num esgar, e restou à Cicinha a impressão de ver outra Leomara que não a equina, pois sobre a pele dela deitavam sombras de asas, e os olhos se ampliavam em poças de fel. Aquele rosto era diversos rostos, que se alternavam no ritmo de um pêndulo invisível.

Naquela tarde descobriu que, através do olho mágico, as pessoas tinham potencialidade de ser umas às outras em uma óptica secreta. Viu o carteiro, menino ruivo bonachão, transformar-se em um cão esguio de olhos amarelos, a uivar para o sol, rouco e nobre. Viu a vizinha do outro lado do corredor, uma jornalista que bulia ordens ao telefone e nunca combinava as cores das meias, transformar-se em frágil periquito que trocava as penas e confiava que o mundo ainda haveria de fazê-lo minhoca. A Jacinta, faxineira que vinha todos os sábados, mesmo depois que a Cicinha parou de chamar por ela, apertava a campainha e tinha a silhueta ampliada em rudeza âmbar. Na cintura, afrouxava-se o funil das formas, o gogódespontava da pele imberbe, o nariz agigantava-se e, por cima dos lábios, crescia um bigode farto. Metamorfoseava-se em um senhor esguio que cheirava a finas ervas e conservava da antiga Jacinta os olhos famélicos. O porteiro do prédio, homem calvo de braços curtos que gritava com ela por detrás da porta e ameaçava chamar-lhe o marido caso não respondesse, não virava bicho, tampouco gente, uma vez na mira do olho mágico. Nele, ela via um fauno, a recitar poemas.

Aquele virou o segredo maior da Cicinha, seu encantamento mais obscuro. O oco entre os batimentos do relógio anunciava um tempo próprio, cuja vertigem só ela conhecia. Quando a luz caía rasteira sobre o assoalho e a casa se esvaziava da presença dos filhos e do marido, espalmava as mãos sobre a porta da cozinha, em prece. Atravessava os dias amuada, um após o outro, plena e imparcial. Quando a família voltava, o coração disparava de dor e pesar, pois sabia que nunca poderia dividir com eles os mistérios do corredor. Se assim fizesse, era capaz de também quererem espiar realidades outras, e a empurrariam para o canto da cozinha, para longe do olho mágico, onde deveria requentar a sopa do jantar e, mais tarde, amornar o leite.

Tratava de ralhar pianinho com os filhos, mesmo sem motivo, só para que eles não a sentissem menos mãe, e corria para o quarto, onde cutucava o couro cabeludo com um pente fino, porque achava que, a todo o instante, formavam-se nós rente ao crânio. Emagreceu e as golas das camisas afrouxaram em torno dos ombros, que não mais luziam morenos, como acontecia nos dias de intensa varredura do chão. Dizia-se que a Cicinha havia diminuído de tamanho e aumentado nos espantos, que não abria a porta para as visitas e que o Otávio agora arrumava a mesa do café sozinho, porque nem dos filhos ela queria saber.

A cada vez que o zunido do elevador revelava a chegada de novas gentes, a Cicinha mirava-lhes os rostos com a boca prensada na madeira, em beijo tépido. O que via não podia dispor em palavras, mas ficava com ela, virava ela, e deitava-se ao lado dela durante a noite, como certeza última. Passou a acreditar no olho de vidro como os filhos acreditavam nas histórias dos livros, e recorria a ele quando estava sozinha, danava-se na espia das almas. Gulosa por novas metamorfoses ligava para as amigas, sustentava conversa por alguns minutos e as chamava para visitá-la, pois eram todas muito queridas. Quando prensavam os dedos sobre a campainha, porém, a Cicinha não atendia a porta e, se desistiam cedo demais, antes de dar tempo de vê-las igualadas a lobos guarás ou a salamandras, gritava: “Espere mais um pouco que estou procurando a chave!”. Elas esperavam, e o indizível acontecia.

Com o tempo, pararam de atender as ligações da Cicinha, que zombava da amizade da boa gente e foi igualada a doida no conhecimento deles. Mesmo assim, precisava de novos rostos, o corredor se desertificava e o olho seco girava dentro da órbita, pedinte de movimento. Chegada a noite, a cabeça coçava e ardia como se carrapatos tivessem povoado o seu entre orelhas e tentassem forçar caminho para o lado de fora. As unhas já haviam se quebrado na esfregação do crânio e o Otávio resolveu esconder o pente no dia em que encontrou um suspiro carmin no travesseiro da esposa. Mas a Cicinha, esperta como só ela, fez-se de conformada e, quando todos estavam assomados no sono, escorregou até a cozinha e buscou um garfo.

Assaltada por ideia luminosa, apanhou a lista telefônica no dia seguinte e escorreu os dedos entre as páginas amarelas, os olhos negros se projetavam à medida que perfilavam os anúncios, pois tinham diante de si registro infindo de endereços e nomes. Encomendou gás de cozinha, pamonha, livros, pizza, professores de línguas mortas, chaves de fenda e televisores. Nunca abriu a porta. O porteiro, desistente de imbuir juízo na Cicinha ou convencer o seu Otávio que melhor seria chamar um médico para sedar os maus intentos da senhora, deixava-os entrar e, um por um, os entregadores, professores e técnicos de informática tiveram seus escopos confiscados pela dona atrás da porta, que mordia os lábios e prendia a respiração para que não a descobrissem tão próxima, onipresente por engano de Deus, que esqueceu as lentes na entrada do apartamento 204.

O carteiro ruivo passou a visitá-la mais vezes, trazia envelopes entre as mãos e os largava no carpete de entrada sem sequer tocar a campainha, recusa que fazia o sangue da Cicinha se chocar quente e espumoso dentro dos vasos. Fora isso, só recebia visita de homens engravatados que, por detrás da porta, diziam-se advogados, mas cujas formas não se desmanchavam diante do olho mágico. Os fulanos mantinham os contornos intactos e, sempre que os encontrava, deixava escapar rouco rugido, lamento de fera ferida. O corpo tombava. A razão também ia ao chão, desmanchava-se embaixo do garfo, que cutucava miolos e empurrava carrapatos aprisionados dentro do crânio para o lado correto, pois precisava retê-los em si, tinha medo que empesteassem a casa e se alojassem nos pijamas dos filhos.

Os filhos a chamavam. Através da porta, os filhos a chamavam, sabia que sim. Encostou os olhos na lente esquecida por Deus e se deparou com um homem e com três crianças na entrada do apartamento 204. Os quatro estavam esguios e risonhos, limpos como nunca os viu, e acenavam para ela, os mais novos pediam que os deixasse entrar porque o pai havia esquecido as chaves. A Cicinha, com a mão congelada na maçaneta, foi assomada pela urgência de vê-los através de olhos imperfeitos, dos olhos dela. Queria beijá-los as bochechas e dizer toda sorte de coisas bonitas, prometer que existe um rádio mágico dentro de cada um que toca música boa o dia inteiro, que faunos habitam secretamente livros de poesia, que era importante que não desistissem de correr, mesmo com os joelhos esfolados, queria pedir que não arrancassem as cascas dos machucados, dizer que cresceriam para ser estupidamente fortes e capazes, que encontrariam no seio da terra inspiração para fazer florir os dedos, para se governarem sóbrios e soberanos e para ensinarem uns aos outros os sentimentos dos pássaros. Fascinada pelos filhos, ela os desconheceu, e segurou firme a maçaneta.