SEÇÕES

[1 conto]

por Amanda Cinelli


Solúvel

Ali, sentada sob o tampo da privada, de frente pro espelho, no banheiro. Era só isso que passava por sua cabeça nos últimos 38 minutos. A água corria fervente na ducha. As paredes continuavam frias. O vapor escondia os reflexos. A umidade já começava a incomodar. O cabelo começou a encurtar subitamente. As mechas longas que confortavam pareciam cada vez mais distantes e enroladas. Desse modo começava a sentir a perda da única forma de se sentir acompanhada. Resolveu não sofrer e adiantou. Tesoura na mão, próxima ao pescoço, cortou. E ali ficou.
De início aquilo tudo que escorria por mim, pelas minhas pernas trêmulas e vencidas. Era tudo de novo. Aqui e ali, tudo era novo de novo. Minha cabeça nunca rodou, sempre esteve lúcida. E o gosto desenfreado de verão na minha boca era suor. Suor na boca. Gozo nas pernas. E as lágrimas continuavam a escorrer. A lucidez não me fazia bem.

Arrepios contínuos; por alguns segundos eles eram meu único estímulo. Podia escutar minha voz interna reverberando: Faça alguma coisa! Ouvir música; acender um cigarro; sair por aí; tudo isso de uma vez só. Só e sozinha.

Sair em busca de existência é tão instintivo quanto confundir dor e amor. Quanto andar sem rumo em busca de liberdade. Nas ruas, todos os dias, um homem segura sua momentânea paixão pelos quadris. Nas ruas, todos os dias, eu seguro meu momento. Todos os dias. Todos os dias não faziam mais sentido.

A hora se fez certa quando escureceu. Três dias com a luz apagada, a chave na fechadura imóvel e a bica da pia sem parar de pingar. Um último olhar antes de sair da casa e a porta bate. Então, correr pareceu a solução mais prática. Correr com frio na barriga porque algo vai acontecer. E seguir em busca do silêncio mais barulhento que pudesse encontrar. Mais uma vez a expectativa.

Poucas horas foram o bastante mais uma vez. Encostada na parede com um copo na mão a observar os outros que também observavam. Expectativas? Certas coisas nunca vão mudar. Mais uma vez saí para ver paixão. Mas só onde não existe. É, sim, impulsão. Porque não é pela veia do coração que vai passar o maior fluxo de sangue quando eu pulsar mais forte com você. Mesmo sabendo que você ainda não existe pra mim.

Se desprender da parede e ir em direção ao bar. Sempre foi essa minha intenção. Fingir-me presa. Desessete segundos para receber um copo de vodka com gelo do menino do bar. Mais vinte cinco para ter o primeiro fonema lançado contra mim. Palavras deixaram de fazer sentido. Já não quero mais saber de seus anseios íntimos ou mesmo de ouvir. Em outras palavras, como eu posso te fazer gozar.

Quando a única melodia que poderia me agradar começou, decidi desistir. Tinha duas opções de saída: uma em meio ao aglomerado de corpos quentes que se movimentavam fora de controle; e outra, fria e tangente, onde eu poderia ter a companhia de algo mais concreto. Não houve escolha. Me auto-expeli.

Agora estou pronta para começar. Encontrar a melhor das sensações. Senti como se fosse preenchida e recortada pelo vento forte que explodia em alta velocidade na minha pele. Durante a madrugada me tornei duas. Uma observava, a outra esperava.

Estava ali, na borda da calçada com um cigarro na mão. "E você? Já sentiu inveja ao saber que alguém jovem morreu por causas naturais?". Quando, em toda sua vida, uma pergunta fez tanto sentido a ponto de não ser necessário pensar numa resposta convencional produzida por cordas vocais?

Reações não puderam ser contidas. Aos poucos e involuntariamente, percebi que minha visão embargava. Os olhos apertaram e com um breve encontro de cílios meu rosto marcava o não dito. A resposta seria positiva para tudo que viesse depois. Sim para conversar, sim para ir ao bar, e sim também para buscar outro lugar. Não me importava com o jeito manso dele falar. Eu mal sabia seu nome. E sim, eu pertencia a ele.

Subi as escadas de chave na mão. Sala vazia, poucos móveis, estranhamente branca. Ao menos eu podia me apoiar nas paredes. Sobe o volume do som com um copo na mão. Aquela música instrumental me pareceu um pouco vazia. Meu olhar se fixa cada vez mais ao dele. Aos poucos preenchemos os espaços vazios entre os móveis, entre as paredes, entre as melodias. Em breve ele preencheria meu espaço.

Sem medo de ser comparada ou comparar repeti compulsivamente meus atos. Entender você sobre mim era muito mais fácil que em outra posição. Entendi minhas afirmações de joelhos, enquanto você se desprendia em meio a suas vibrações sonoras.

No dia seguinte eu esqueci, mais uma vez. Antes do sol eu cheguei no meu teto. Ainda com cheiro e os dedos melados. Na minha cabeça a moldura estava completa: eu só conheço esquecendo. O rosto dele começava a se dissolver para mim. Meus pensamentos se diluíram. Isso não fazia mais sentido. Liguei o chuveiro.