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olhares sobre o corpo e o tempo

por Lais Maria Oliveira


Olhares sobre o tempo e o corpo em As horas nuas, de Lygia Fagundes Telles

 

No meu corpo cabe tudo.
Cabe passado e presente,
Mais do que tudo o futuro
.
Murilo Mendes, em História do Brasil.

        Questões referentes à velhice foram tema de muitos escritores, como Walter Benjamin (1994) que, em suas considerações sobre a narrativa oral e a construção da experiência, nos lembra da importância daqueles que – mais velhos – servem de conselhos ou exemplo aos mais jovens. Outra autora que reflete acerca da velhice é Simone de Beauvoir, mais especificamente no segundo volume de O segundo sexo (1967), em que discorre sobre a mulher e seus vários papéis sociais: a menina, a adolescente, a moça, a lésbica, a mulher casada etc. Ao lançar seu olhar sobre a mulher madura, Simone de Beauvoir denuncia a angústia e inquietação de muitas mulheres que, depois de terem cumprido com os “deveres” de esposa, mãe e dona do lar, se sentem inúteis perante a sociedade.
        A situação da mulher vem se transformando, principalmente a partir do final dos anos 60 e início dos 70, com a liberação sexual e com a eclosão de lutas pela igualdade de direitos políticos e econômicos entre os sexos. No entanto, alguns paradigmas permaneceram, entre eles o da crise da idade madura feminina. No que diz respeito à ficção, Lygia Fagundes Telles é uma autora que trata do tema, e nesse sentido ressalto a obra As horas nuas, escrita em 1989. Quando li este livro de Lygia, percebi um diálogo potente com Simone de Beauvoir, e me inquietou descobrir se Fagundes Telles teria lido ou não sua precursora Beauvoir. Até que uma amiga me emprestou outro livro de Lygia, Durante aquele estranho chá (2002), e então, com o texto "Papel quadriculado", descobri que as escritoras não só se leram, como se encontraram e conversaram a respeito da velhice. Como nos conta a escritora paulistana:

Abriu a grande bolsa e tirou de dentro o livro que me ofereceu, La Femme rompue. Cortou com um gesto o agradecimento que ensaiei fazer e com aquela letra sem fronteiras, fez a dedicatória. Em seguida, olhou firme nos meus olhos e assim inesperadamente fez a pergunta, Você tem medo de envelhecer? (Telles, 2002, p. 39)

        Questão inesperada, que deixou a escritora sem resposta naquele instante. Todavia a reflexão sobre a pergunta inquietante pode ser vista em As horas nuas. No romance, temos o dilema de uma mulher de 50, Rosa Ambrósio, que depois de ter abandonado a carreira de atriz, começa a se entregar ao vício da bebida e a rememorar seu passado de glória e sucesso. A personagem tem planos de escrever suas memórias e, para isso, grava suas lembranças – o que serve também como passatempo para ela que passa o dia deitada no chão bebendo whisky e questionando sua vida e, principalmente, sua idade e seu corpo. Corpo que já não aceita e prefere esconder de todos.
        Simone de Beauvoir discute sobre como a história de vida de uma mulher depende muito mais de seu estado fisiológico do que a de um homem, afinal é a mulher quem carrega e dá a luz aos indivíduos, alimenta-os por um largo período e cuida até que se tornem independentes. Para isso, é necessário que seu corpo esteja em condições saudáveis. Para que esta máquina biológica funcione bem, diversas mudanças hormonais ocorrem, e, durante essas passagens, muitas vezes a mulher passa por crises: na puberdade, com a menstruação e toda a carga psicológica que ela traz, na iniciação sexual, na gravidez, no parto, na menopausa. Em todas estas fases a mulher sofre bruscas mudanças em seu corpo. E, junto a estas mudanças físicas, vêm outras no âmbito social. Neste sentido, Judith Butler afirma:

O sexo é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem ou uma descrição estática daquilo que alguém é: ele é uma das normas pelas quais o alguém simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural (1993, p.2).

        Beauvoir já havia inaugurado esse questionamento de Butler quando disse que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher” (1967, p.9). Como também havia nos esclarecido que são as funções biológicas do corpo feminino e o discurso em torno delas que impõe muitas vezes à mulher esta imagem de simples reprodutora, este papel social de geradora e zeladora de vidas. Findada esta obrigação, ela se torna dispensável. E, apesar de anos passados desde este questionamento de Beauvoir, ainda hoje assistimos à cobrança social dirigida às mulheres quanto ao casamento e à gravidez.
        A personagem do livro de Lygia Fagundes Telles está em meio à crise da menopausa. Tendo realizado muitos papéis no teatro, se tornado uma atriz famosa, com vida profissional intensa, ela, agora, com sua saída dos palcos, se sente inútil, presa em seu apartamento e à reflexão sobre suas memórias. Rosa deixou os palcos por escolha própria, e o motivo – que apenas seu ex-amante Diogo e nós, leitores, sabemos – é sua própria crítica ao corpo e a idade. Ela se sente mal ao atuar cheia de rugas, com o corpo magro e a pele murcha. Para ela, a idade é um empecilho para o sucesso na carreira:

O que eu devo fazer? Perguntei tantas vezes. Ele ficava me olhando com aquela sua ironia meio divertida e, ao mesmo tempo, afetuosa. Okey, falei no tempo e vejo agora que com ele tinha o tempo diante de mim. O tempo diante de mim. Dizia que eu era uma burguesa alienada. Poderia ter dito uma burguesa assumida porque nunca neguei minha condição. Tantos espelhos. Mas só agora me vejo, uma frágil mulher cheia de carências e aparências, dobrando o Cabo da Boa Esperança, já nem sei que Cabo é esse, era a mamãe que falava nisso mas deve ter alguma relação com a velhice, ô! meu Pai, que palavra ignóbil (Telles, 1989, p.11)

        A imagem do espelho aparece diversas vezes durante a narrativa. E vale lembrar da afirmação de Foucault (2010)  sobre este objeto, o espelho, que nos mostra e nos ensina que “temos um corpo, que esse corpo tem uma forma, que essa forma tem um contorno, que nesse contorno há uma espessura, um peso, numa palavra, que o corpo ocupa um lugar” (p.5). O espelho, ainda que nos reflita de maneira fragmentada, é este convite à realidade, onde me vejo, eu, corpo vivo, matéria, pele. É onde me observo, me contento ou me descontento, dependendo da minha utopia. E para Foucault, as utopias nasceram de nosso próprio corpo e depois, talvez, se voltaram contra ele. O corpo utópico de Rosa Ambrósio, é o corpo jovem, rijo, exalando a frescura de tempos remotos.
        Esta ditadura da juventude do corpo, imposta pela própria personagem, vemos ainda hoje por meio da moda e por intermédio da mídia, que nos exigem padrões estéticos rígidos. Todos os dias, milhares de mulheres lutam para alcançar o peso ideal, para manter a pele jovem, para isto lançam mão de tudo o que o mercado oferece: remédios, exercícios, cirurgias plásticas. Os implantes e transformações cirúrgicas, tão necessários à saúde, à troca de sexo ou mesmo à autoestima, tão evidenciados por Donna J. Haraway em seu Manifesto ciborgue (2000), se tornam, muitas vezes, medidas desesperadas para conseguir um corpo perfeito, este corpo utópico e irreal. Nos explicita Naomi Wolf (1992):

O mito da beleza na realidade sempre determina o comportamento, não a aparência. A juventude e (até recentemente)a virgindade foram "bonitas" nas mulheres porrepresentarem a ignorância sexual e a falta de experiência.O envelhecimento na mulher é "feio" porque as mulheresadquirem poder com o passar do tempo e porqueos elos entre as gerações de mulheres devem sempre serrompidos. As mulheres mais velhas temem as jovens, asjovens temem as velhas, e o mito da beleza mutila o cursoda vida de todas.E o que é mais instigante, a nossaidentidade deve ter como base a nossa "beleza", de talforma que permaneçamos vulneráveis à aprovação externa,trazendo nosso amor-próprio, esse órgão sensível evital, exposto a todos (1992, p.17).

        A atriz decadente e alcoólatra, que passou por cirurgias plásticas, ainda não se sente satisfeita. Encerrada e solitária em seu apartamento, se agarrar ao passado, à sua juventude e à juventude de seu corpo parece um caminho mais fácil. Enquanto reclama de si e dos outros, é Rahul, seu gato de estimação, quem a escuta e nos mantém informados:

Rosona veio com seu robe d’interieur e seu espelho de aumento que odiava, mas não podia ficar sem ele. O espelho dos horrores, dizia. Agora o esqueceu por completo, mas nessa época carregava o espelho para onde ia. Até largá-lo nas mesas, nas poltronas, grande parte do tempo passava procurando o espelho e algumas outras coisas que ia achando e perdendo.
– Ora, Diogo, você ainda acredita em pesquisa? Desde que o primeiro homem começou a envelhecer esses pesquisadores pesquisam a cura da velhice, a pior das doenças. Até o Diabo foi invocado mil vezes. Descobriram? Hem?!... (Telles, 1989, p.26).

        Numa espécie de autopunição, Rosa Ambrósio mantém o espelho de aumento ao seu lado. Mesmo antes de se entregar à bebida, ainda relacionando-se com Diogo, sua exagerada preocupação com a idade e com o corpo acabam por deixá-la cega. Enxerga demais a si mesma e esquece de todo o resto. Não suportando as marcas do tempo no corpo, recorre à cirurgia plástica, ao tingimento dos cabelos e dos pelos:

Podia fazer essa tintura no cabeleireiro, seria mais simples. Mas se preocupa em não se entregar, elegeu as poucas pessoas nas quais confia e no círculo hermético entra este gato. Tem ainda a tintura dos pêlos íntimos, vai precisar prosseguir nessa operação que detesta até seu íntimo fim. Você não envelhece hem?! (p.33).

         Mais tarde, no entanto, já não suportando sua condição de mulher mais velha e o desgaste do corpo, acaba por se entregar às lembranças de seu passado, quando era jovem e bela, deixando seu presente e seu corpo à deriva enquanto, aos poucos, a bebida lhe tira a saúde e os sonhos que restam.
        O problema com a filha única, Cordélia, torna ainda mais difícil a relação de Rosa com o mundo exterior. Inconformada com o fato de Cordélia gostar de namorar homens mais velhos, Rosa implica muito com a filha, provocando seu afastamento. A respeito desta relação entre mulheres mais velhas e suas filhas, afirma Beauvoir:

A mãe que se identifica apaixonadamente com a filha não é menos tirânica; o que quer é, munida de sua experiência madura, recomeçar a juventude; assim salvará seu passado em se salvando dele; escolherá ela própria um genro de acordo com o marido sonhado que não teve; coquete, meiga, imaginará de bom grado que é a ela que, em alguma região secreta do coração, ele desposa; através da filha satisfará seus velhos desejos de riqueza, de êxito, de glória (1967, p.356).

        Graças ao afastamento da profissão, do amante, dos amigos, de qualquer vida exterior, Rosa vê na filha o caminho para a realização de seu sonho da juventude. Jovem e bonita, na concepção de Rosa, sua filha precisa relacionar-se com pessoas do mesmo nível, não com “velhos”, que são tão “ignóbeis”, nas palavras da personagem. Sua insatisfação – com o corpo e com sua idade – faz com que ela sinta repulsão pela velhice em geral. Não só a vida amorosa da filha é posta em questão, mas todas as escolhas feitas por ela.

Bebo sem vontade, por que estou assim amarga? Vai ver, é inveja, estou ficando velha e me ralo de inveja dos jovens que vêm cobrindo tudo feito um caudal espumejante, o ralador de queijo. Inveja de Ananta, inveja de Cordélia – também de Cordélia? É claro, inveja de minha filha. Sou um monstro, digo e me cubro com uma blusa. Espera, não é tão simples assim, a verdade é que eu queria apenas uma filha normal – será pedir muito? Podia ser livre, podia morar longe com sua tropa de amantes, aceito. Mas não precisava ser uma tropa de velhos (1989, p. 21).

        A morte do marido, Gregório, sujeito engajado politicamente, homem sábio, interessado por astronomia, segundo nos informa Rosa, também contribui para a angústia da personagem perante a vida. Como nos lembra Foucault (2010), outro lugar que nos remete a materialidade do corpo é a morte, o corpo sem vida. A imagem do cadáver chama a atenção para a brevidade da existência, para o tempo que corrói o corpo e a memória. Assim como esse outro que se foi, que agora é apenas carne sem vida, corpo que aos poucos irá se desfazer, também Rosa sente a aproximação da morte, a velocidade do tempo que não perdoa nada e ninguém. A velhice carrega certa marca do medo, da incerteza da morte, e por isso, muitas vezes, a relutância em aceitar as marcas do tempo sobre o corpo, nos lembrando a cada momento que as horas se esgotarão. Assim, as horas nuas, título do romance de Telles, horas descobertas em sua realidade corrosiva.
        Beauvoir diz que a mulher “pode trapacear com o espelho, mas quando se esboça o processo fatal, irreversível, que vai destruir nela todo o edifício construído durante a puberdade, sente-se tocada pela própria fatalidade da morte" (1967, p.344). Assim se sente Rosa, imersa em lembranças para fugir do tempo que insiste em lhe chamar a atenção para a aproximação do fim. Nas últimas tentativas de manter o corpo jovem, recorrendo a todo tipo de ferramenta para maquiar a idade, Rosa também se submete à terapia, aconselhada por amigos e familiares. Seguem-se longas sessões no divã, e mais divagações, mais queixumes do que poderia ter sido e que não foi. Todos os dias o mesmo ritual: quando não está na terapia, Rosa passa os dias numa espécie de monólogo interior, na maior parte do tempo em voz alta para o registro do gravador. E claro, sempre acompanhada da bebida, fiel companheira das desilusões do ser humano.
        Há um conto de Lygia Fagundes Telles, "Apenas um saxofone" (2009) que tem muitas semelhanças com o romance As Horas Nuas. No conto, temos um monólogo interior da personagem Luisiana, que também rememora seu passado enquanto toma whisky e não aceita sua condição de mulher de quase 50¸ rica, sozinha e velha. Esta não aceitação do próprio corpo – tema evidente não só na literatura, mas na própria vida, principalmente na das mulheres, em quem a cobrança por beleza e por juventude é maior e mais cruel – tem assumido na contemporaneidade proporções cada vez maiores. Afinal, numa sociedade pautada na sexualidade e controlada por mecanismos de biopoder que dominam os índices de natalidade, de mortalidade e de reprodução, deixar de ser um sujeito reprodutor surge como um risco ao Estado, que teme a escassez de mão de obra, a redução dos lucros, o encolhimento da arrecadação de impostos, o aumento no número de aposentadorias etc. Nas palavras de Foucault:

Quanto a nós, estamos em uma sociedade do “sexo”, ou melhor, de “sexualidade”: os mecanismos de poder se dirigem ao corpo, à vida, ao que faz proliferar, ao que reforça a espécie, seu vigor, sua capacidade de dominar, ou sua aptidão para ser utilizada. Saúde, progenitura, raça, futuro da espécie, vitalidade do corpo social, o poder da sexualidade e para a sexualidade; quanto a esta, não é marca ou símbolo, é objeto e alvo (2007, p.160-1).

        Mas como objeto e alvo de um sistema disperso de poderes, a sexualidade e, mais que isso, a vida, têm conseguido contornar tal lógica capitalista. Pois se onde “há poder há resistência e (...) esta nunca se encontra em posição de exterioridade em relação ao poder” (Foucault, 1988, p.105), os altos índices de longevidade têm demonstrado como homens e mulheres lutam pelo direito à vida e pela igualdade deste direito. É cada vez maior o número de aposentados que continuam no mercado de trabalho, e em alguns concursos públicos a maior idade já se tornou critério de desempate na classificação final de candidatos. Vivendo cada vez mais e melhor, a população idosa vem aos poucos ganhando espaço e voz na sociedade. É certo que ainda falta acabar com o preconceito em torno da velhice e com a negação do corpo, principalmente por parte das mulheres, afinal, o corpo é o nosso veículo de existência, nossa maneira de estar no mundo, matéria sensorial, carregada de experiências e sentidos. Se o tempo marca essa matéria, não é apenas para nos lembrar da morte que se aproxima, mas antes para evidenciar a vida, o quanto já se viveu e experimentou, o quanto já se aprendeu. É este o olhar que as mulheres deveriam ter sobre seus corpos. Isto não significa que cremes ou tintura de cabelo não sejam importantes, até mesmo como forma de carinho com o corpo, de cuidado e de vaidade. No entanto, a postura diante do corpo deveria ser de uma vaidade saudável, que não buscasse uma perfeição ideal. Como nos lembra Foucault (2010) nosso corpo é o lugar irremediável a que estamos condenados, e devemos aceitá-lo, cuidá-lo com afeto, vê-lo como ferramenta engenhosa de experimentação.
        Porque temos mãos que fazem inúmeras coisas, que escrevem, que pintam, que acariciam o rosto da pessoa querida ou a pelugem de um gato; porque temos uma garganta e uma boca que falam, que dizem ao mundo o que nossa cabeça maquina, o que o cérebro questiona; porque temos pernas que nos levam a tantos lugares e pés que podem caminhar sobre a praia, sobre a grama; temos um par de olhos por onde podemos enxergar o mundo, os outros, olhos que já foram chamados de “janelas da alma” e que são também as janelas do corpo; por tudo isto, pelos órgãos que trabalham continuamente para que essa máquina engenhosa funcione; pelas incontáveis habilidades que expressamos graças ao nosso corpo que devemos tanto a ele. O que não significa que não possamos transformá-lo. Se em grande escala nossos corpos são prisioneiros de um sistema político de controle, de discursos dominadores que nos convidam a padrões de comportamento, em pequena escala temos liberdade de fazer modificações, transformações em nossa pele, órgãos, membros. Ou arruiná-lo, como faz cotidianamente Rosa Ambrósio, que apesar de cuidar diariamente de sua aparência externa com cremes, cirurgias, tinturas e todo tipo de aparato de beleza, destrói seu corpo com o álcool, que vai lhe tirando a agilidade, a saúde e a rapidez de pensamento até que ela perca a vaidade, uma de suas características mais marcantes, e se encontre no chão, agarrada aos lençóis e à garrafa de whisky, chorando feito criança.
        No romance de Lygia, depois de longo período, Rosa é tomada por uma força inesperada, por uma vontade de mudança. E assim como Luisiana de "Apenas um saxofone" – que depois de ter mandado seu amor “partir”, e que agora trocaria todo o seu dinheiro e joias, tudo o que tem para poder ouvir um pouco o som do saxofone de seu amor do passado –, Rosa Ambrósio também decide trocar seu vício, seu whisky de cada dia, pela esperança de poder reencontrar Diogo. Destinada a reconquistá-lo, ela se interna numa clínica de desintoxicação. Como disse Foucault, há três lugares que revelam nosso corpo como ele realmente é: o espelho, o cadáver e o amor. É através do amor que Rosona começa se não a aceitar, pelo menos a permitir a existência de seu corpo e sua condição de mulher madura. É por causa do amor, amor que foi sexual, e que agora é utópico. É por ele que a personagem vai em busca de auxílio para salvar o seu corpo, deteriorado não só pelo tempo, mas pela dor e pelo álcool. Segundo Foucault:

Talvez seria preciso dizer também que fazer o amor é sentir seu corpo se fechar sobre si, é finalmente existir fora de toda utopia, com toda a sua densidade, entre as mãos do outro. Sob os dedos do outro que te percorrem, todas as partes invisíveis do teu corpo se põem a existir, contra os lábios do outro os teus se tornam sensíveis, diante de seus olhos semi-abertos teu rosto adquire uma certeza, há um olhar finalmente para ver tuas pálpebras fechadas. Também o amor, assim como o espelho e como a morte, acalma a utopia do teu corpo, a cala, a acalma, a fecha como numa caixa, a fecha e a sela. É por isso que é um parente tão próximo da ilusão do espelho e da ameaça da morte; e se, apesar dessas duas figuras perigosas que o rodeiam, se gosta tanto de fazer o amor é porque, no amor, o corpo está aqui. (1988, p. 5).

        No final do romance há ao menos a esperança de reencontro no amor. O afeto de Rosa faz com que ela procure por ajuda para parar de beber e tentar um recomeço. O corpo é trazido para a dimensão do outro, é preciso que ela cuide de seu corpo, de sua saúde, para que consiga trazer de volta aquele outro corpo, o corpo de quem se deseja. Assim, se o tempo foi o principal responsável pelo envelhecimento do corpo, é também ele que faz com que Rosa reflita sobre sua condição e escolha sair dela, se livrar do peso de uma vida solitária a e fadada à reclusão. O tempo que machucou é o mesmo que agora faz cicatrizar, abandonar as feridas e lutar por uma nova vida.

 

 

Referências:

BENJAMIN, Walter. "O Narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov". In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 197-221.
BUTLER, Judith. "Corposque pesam: sobre os limites discursivos do 'sexo'". In: O corpo educado – pedagogias da sexualidade. Tradução e organização: Guacira Lopes Louro.  Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.
FOUCAULT, Michel. "O corpo utópico. A conferência, de 1966". In: El cuerpo utópico: Las heterotopías, Madrid: Ed. Nueva Vision. A versão que uso foi publicada no jornal argentino Página/12, 29 nov. 2010. A tradução é do Cepat.
HARAWAY, Donna J. "Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX". In: SILVA, Tomaz (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
TELLES, Lygia Fagundes. "Apenas um saxofone". In: Antes do Baile Verde: contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
TELLES, Lygia Fagundes. As Horas Nuas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.
WOLF, Naomi. O Mito da Beleza – Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Tradução de Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.