É preciso fazer um esforço
A vida não é mera repetição. Diferente do que possa apontar a maior parte da prática social e econômica vigente, a potência “vida” jamais será uma interpretação conformada do eterno retorno de Nietzsche. Segundo a leitura do pensador alemão por Paulo Virno, somente a experiência atual pode determinar retroativamente o sucedido, apenas o agora é capaz de estabelecer o conteúdo da repetição. Num sentido contrário à possibilidade do “agora”, a emergência do déjà vu revela um passado que se cola ao presente em identificação absoluta - a este último não resta nada além de uma paralisação, uma imobilidade frente a repetição obstinada de um feito. Em oposição à experiência presente, ao hic et nunc indispensável a toda reinscrição do passado por um presente ativo, o déjà vu, “patologia pública da contemporaneidade”, se estabelece numa sociedade predisposta por todos os meios a um “ver-se viver”. Afasta-se o indivíduo e o coletivo da experiência presente, dando lugar a uma visualidade da memória do atual. A perspectiva do déjà vu aponta o indivíduo espectador de si mesmo, colecionador da própria vida enquanto acontece, assim sendo, de fato, próprio à sociedade do espetáculo. O termo cunhado por Guy Debord trata da “exposição universal” baseada no sistema econômico da constituição de imagens-objetos, da afirmação da vida humana como simples aparência e, nesse sentido, “uma negação visível da vida; uma vida que se tornou visível” (Debord, 1997, p.12). Partindo do princípio “o que aparece é bom, o que é bom aparece” (p.12), instaura-se no homem moderno uma hipnotização pelas recordações que se manifestam como coleção excessiva de imagens – excesso de memória, excesso de história. Nesse sentido vale citar o facebook como um dos principais meios de comunicação em massa. Se a televisão já produzia objetos-imagem através da ditadura do espetáculo “estrelar”, a rede social mais utilizada no mundo é meio de uma absoluta espetacularização do presente de si mesmo. Na confecção de virtualidades instantâneas, imagens da própria experiência interrompida pela paralisação conferida ao gesto, o que se tem é a perda da experiência presente pela configuração imediata da recordação.
Não é somente pelas facilitações técnicas que se torna possível conceber duas mil fotografias em uma viagem de cinco dias. O aprimoramento da técnica se dá também por uma requisição do espetáculo. O distanciamento da experiência: viver a vida é substituído por um “ver a vida”. Na rede “Instagram”, o que se sugere via slogan é a “captura e o compartilhamento dos seus momentos pelo mundo”. O dispositivo que possibilita a divulgação online de inúmeras fotos com tratamento de imagem em instantes submete toda experiência à validação mediante a prova do espetáculo – a exposição, o registro. Entopem-se as páginas das redes com um popurrí de imagens repetitivas que comprovam a experiência, desviada sempre para o fazer do registro – a viagem, o show, a praia, o aniversário. Toda experiência se torna registro imagético da experiência (que já não ocorre por si, já que é obrigatoriamente atravessada pela necessidade de registro, de memoria – excesso de memória). Acumula-se num nada seletivo trabalho de antiquário uma sequencia de registros da experiência que são, em si, esvaziados dela própria.
Paulo Virno tratará o espetáculo como forma do déjà vu – aquilo que dá a plena visibilidade do possível e reduz esse possível a feitos realizados. Segundo o pensador, o problema não se concentra na composição constante de recordação do presente, ou seja, “na fratura de todo instante em um “agora” percebido e um “agora” recordado”. O problema está, desse modo, nessa absoluta visibilidade do poder-fazer que, colocando a sociedade frente à “incapacidade de suportar a experiência do possível”, faz com que essa opere uma transfiguração da recordação do presente em um “falso reconhecimento”. O “falso reconhecimento” elimina a possibilidade potente do agora virtual, e também do agora percebido, reconfigurando o possível como um feito realizado: na negação da faculdade mnésica, tudo se torna repetição, um real tal qual outro já ocorrido, sem operação que possa lançá-lo como ação num sentido futuro. Resta apenas o cultivo obsessivo das memórias em si mesmas, sem que se consiga reconfigurá-las num “novo empreendimento”. E assim, de fato, o que ocorre é a paralisação, o homem dando voltas entorno da própria memória, boi movendo um moinho sem cana.
É verdade que todos os dispositivos de poder – do sistema econômico às mídias de massa – configuram um sistema de produção/repetição que retém os indivíduos na conformação do mesmo. Porém, não é a potência da forma-passado como existência de uma anterioridade que é por si só danosa à ação presente. Pode-se, de fato, empreender uma atuação significativa através da seleção ativa e atenta desse virtual que nos envolve. A noção de um passado que se inscreve enquanto presente e que pode se rearticular na propriedade do discurso, do imaginário, do fazer da experiência é o que possibilita o resgate de uma sociedade inerte e apática. Não há dúvidas de que a presença imperiosa do passado-em-geral – virtualidade - é de difícil manuseio. No entanto, e segundo Virno, eis um dos grandes problemas da situação contemporânea, é preciso “aprender a viver a recordação do presente” e assim “alcançar a possibilidade de uma existência plenamente histórica” (Virno, 2013, p.58). Nesse sentido, vale citar parte do texto de Ana Cristina Cesar intitulado “Pequeno raciocínio fantástico ou o delírio teórico da baronesa”:
Mas é verdade, eu vivo e escuto do que vivo ao mesmo tempo. Ouço um noturno discurso a me descrever exatamente isso em pormenor. Tudo me leva a crer que se trata do Texto Perfeito da minha própria vida, da Biografia Ideal, que se produz como texto simultaneamente à vida. Ao ouvir este longo texto, um pouco encantada, sem dúvida, percebo que seu segredo é ter encontrado a perfeita harmonia entre as palavras que se pensam (a grafia da vida) e a realidade sem palavras (a própria vida que me vive). Percebo ainda que sou eu que sou vivida, sou eu que sou grafada, sou eu também que escuto em surdina esse velho discurso que me grafa. E finalmente, vislumbro maravilhada que sou eu que escrevo, agora, aqui neste cais deserto onde entra sem ser visto um velho cargueiro inglês. Percebo que o seu segredo é que, ao dizer “eu”, este texto realiza a conjunção entre o real (esta minha vida ou quem a viva), o simbólico (este discurso ou o pronome eu que aqui deliro) e o imaginário (este ouvir constante da minha própria biografia); e ao realizar essa conjunção, manifesta também o momento que consciente e inconsciente se encontram sobre as pedras úmidas do porto e ao que tudo indica é aí que são produzidos desejos informuláveis.(Cesar, 2008)
O texto da poeta carioca apresenta uma espécie de déjà vu onde ver-se é ouvir-se. O “Texto Perfeito” da própria vida, a “Biografia Ideal” aponta para uma virtualidade que se escreve simultaneamente a vida, “descreve exatamente isso em pormenor” – o agora percebido e o agora recordado. A escrita se faz como registro, recordação da vida enquanto acontece, memória do velho discurso que a vive - “sou eu que sou vivida, sou eu que sou grafada”. Há um encanto na percepção da harmonia “entre as palavras que se pensam” - a grafia da vida, a recordação, o registro - e “a realidade sem palavras” - marca de uma impossibilidade de registro, a experiência vibrante em si mesma. O que vislumbra, enfim, maravilhada, é que para além de um discurso que a grafe, é ela própria quem escreve aqui e agora – hic et nunc, na realidade presente de um cargueiro que adentra no porto; é ela própria que em sua qualidade singular e essencial na forma presente pode efetuar a escrita desse texto. Isso, me parece, aponta para leitura que Paulo Virno faz do eterno retorno de Nietzsche. A inscrição do passado só pode ser determinada pelo fazer presente, pela escrita do atual e pelo corpo que se singulariza em presença aqui e agora neste cais. O segredo, ou seja, aquilo que não se dá a plena visibilidade, é que ao dizer “eu”, une-se o real da ação presente com a virtualidade do velho discurso (forma-passado), acrescido ainda, e aí está o elemento surpresa, de uma potência de imaginário que cria passado e presente numa existência histórica e imaginativa. Nesta conjunção em que o visível (consciente) e o invisível (inconsciente) se manifestam, o que se obtém é uma pulsão desejante – desejo que não se remonta em mercadoria pois é informulável, e que por isso também não se dá a ver, mas que se produz na qualidade presente do aqui e agora, “sobre as pedras úmidas só porto”.
Me parece que esse poema-ensaio de Ana Cristina Cesar passa exatamente por um “aprender a viver a recordação do presente”. O encantamento/estatelamento provocado pelo déjà vu é subvertido pelo pensamento, pela percepção do agora enquanto experiência vital e singular. A potência imaginativa rompe com o ciclo repetitivo que se afirma pelos mecanismos de poder (e suas consequentes patologias que determinam “comportamentos coletivos, estilos de vida e propensões emotivas”) (Virno, 2013, p.59). O fazer do pensamento como articulação do presente e, anacronicamente, como uma articulação/fazer do passado é a possibilidade que pode nos resgatar do ciclo vicioso da sociedade do espetáculo. Sem sombra de dúvidas, a dificuldade que se instala no gesto de rompimento através de uma série de agenciamentos de poder faz com que seja mais simples – e também mais danoso – filiar-se à repetição acomodada.
Bem, é preciso fazer um esforço.
Referência:
CESAR, Ana Cristina. Antigos e soltos – poemas e prosas da pasta rosa. São Paulo:IMS, 2008.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Paráfrase: Railton Sousa Guedes, Coletivo Periferia. Versão e-book: http://www.ebooksbrasil.com/eLibris/socespetaculo.html
VIRNO, Paulo. El recuerdo del presente: ensayo sobre el tiempo histórico. Buenos Aires: Paidós, 2013, 1ª edição.