Corpos "escrevividos" entre assuntos segredados: a representação da menstruação em Insubmissas lágrimas de mulheres
O livro Insubmissas lágrimas de mulheres foi publicado em 2011 pela editora Nandyala que, segundo Virgínia Vasconcellos Leal (2015, p.119), é marcado por um projeto político de visibilidade de grupos marginalizados. Apesar de já ter sido objeto de estudo em universidades brasileiras, a obra ainda é pouco conhecida fora do espaço acadêmico. A autora, Conceição Evaristo, está entre aquelas/es que, de acordo com Regina Dalcastagnè (2012), diante do 'desejo de escrever' adentram no território contestado da literatura brasileira contemporânea. Por ser uma mulher negra que escreve à margem, com vista em representar o subalterno, tornou-se imprescindível refletir sobre os discursos patriarcais de silenciamento e inferiorização. Afinal, como afirma Michelle Perrot (2005, p. 9), esses discursos são resultantes da partilha desigual dos traços da memória e da História e, por conseguinte, são responsáveis pelo esquecimento das mulheres “como se, por serem destinadas à obscuridade da reprodução, inenarrável, elas estivessem fora do tempo, ou ao menos fora do acontecimento”.
Corpo/história feminina: a articulação do tempo humano
O filósofo Paul Ricoeur foi um dos grandes pensadores franceses do período pós Segunda Guerra Mundial. O conceito das três mimeses é abordado por ele na obra Tempo e Narrativa (1984) e parte do princípio de que a narração possibilita uma compreensão do mundo e de nós próprios numa dimensão temporal – um tempo humano.
Para formar esse conceito, Ricoeur fundamenta suas discussões a partir de um diálogo atemporal entre a teoria do tempo em Santo Agostinho e da intriga em Aristóteles. Dessas leituras, constata que "o tempo se torna humano na medida em que está articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência temporal" (Ricoeur, 1994 [1984], p.15).
O autorarticula a relação entre tempo e narrativa em três mímeses: A prefiguração (mímese I), em que a narrativa é prefigurada na experiência humana, a configuração (mímese II), em que é configurada no exercício da escrita, e a refiguração (mímese III), que acontece no ato de leitura. É um ciclo. Assim, a intriga representa o mundo humano e está intrinsecamente ligado a ele.
A análise da intriga é embasada, por Ricoeur, a partir da poética de Aristóteles. Segundo ele, mime/intriga corresponde ao agenciamento dos fatos (muthos), ou seja, narração. A mímese, cuja etimologia grega é mimoe, significa imitação, representação. Porém, Ricoeur ressalta que ela não é pura cópia; a melhor definir é representação, ou seja, um "corte que abre para o espaço da ficção" (Ricoeur, 1994 [1984], p. 76).
Diante disso, essa construção de sentidos ocorre por meio da intermediação entre a obra e o público, ou seja, por meio da "Kartharsis", dando a obra o motivo da sua existência. O leitor é o operador por excelência. É ele quem faz o percurso da mímese I (prefiguração) para a mímese III (refiguração) por intermédio da mímese II (configuração).Assim segundo Ricoeur, a linguagem textual se projeta para fora, para quem lê. O que lhe faz pensar a análise textual de forma hermética. Uma hermenêutica literária não se restringe a mímese III, ela preocupa-se em reconstruir o círculo inteiro das operações pelas quais a experiência prática se dá; pelas obras, autores e leitores.
Diante do fato de que a mímese I instaura que toda obra é aportada em fatores que a antecedem, salienta-se que os discursos que outrora produziram marcas de inferioridade, submissão e exclusão ao corpo feminino foram sustentados por um poder regulador que promoveu verdades, oferecidas como incontestáveis, que o definiam como algo doente, fraco, e que precisava ser cuidado.
Quando pensamos no Brasil, e em outros países em que o povo negro foi escravizado, esse discurso não se aplica ao corpo da mulher negra. Antes houve aí uma objetificação. Um corpo nascido para servir tanto sexualmente quanto por meio da exploração do trabalho braçal. Ressalta-se, no entanto, que embora tenham sido atingidos por diferentes discursos, sobre ambos foi construído a ideia de submissão. Infelizmente, essas construções discursivas ainda são reproduzidas na contemporaneidade. Seus resquícios estão enraizados em muitas de nossas práticas sociais.
Segundo Guacira Lopes Louro (1997, p.39), historiadora que estuda o gênero e as pedagogias do corpo embasada no pensamento foucaultiano de biopolítica, o poder é exercido em muitas e variadas direções, logo, está em toda parte. Ele recobre as instituições, os indivíduos e atinge todos os domínios da vida humana, privada e/ou pública. Entretanto, o fato de que os discursos por ele produzidos e reproduzidos reforça-o, "mas também o mima, expõe, debilita e permite barrá-lo". Isso porque o poder não existe sem liberdade e sem possibilidade de revolta e resistência. Caso contrário, se torna repressão e violência.
Essas constatações levaram-na a afirmar que "os gêneros se produzem nas e pelas relações de poder, ou seja, por meio do biopoder: poder de controlar as populações, de controlar o 'corpo-espécie'". Louro (1997, p.41) retoma também o pensamento foucaultiano de que o "silêncio e o segredo dão guarida ao poder, fixam suas interdições, mas também, afrouxam os seus laços e dão margem a tolerâncias mais ou menos obscuras". Das reflexões feitas por Guacira Lopes Louro é possível inferir que, mesmo de maneira implícita, os nossos corpos são vigiados e controlados por relações de poder.
Para exemplificar os efeitos da biopolítica na vida individual e coletiva, Denise Gabriel Witzel (2014, p. 529), destaca que os discursos voltados para as políticas das cidades e de suas populações fabricaram a ideia do corpo coletivo: algo a ser controlado e vigiado por todos pelo bem da vida em sociedade. Sem controle sobre o próprio corpo, o indivíduo passa a ser disciplinado e regulamentado por discursos que passam a definir "onde morar, o que é higiene, como fazer sexo, em que medida controlar ou não a natalidade, quais seriam as horas de prazer e de dor de uma sociedade toda, como fazer para ampliar ou não a longevidade, o que fazer para ter uma administração do 'bem-estar social'".
Em suma, o poder regulamentador, panóptico e disciplinar exerceu intenso controle sobre o corpo. Em relação ao corpo da mulher, sua história foi construída por meio de um pensamento dualista que lhe reservou como características essenciais a passividade, a fragilidade e a reprodução. O que pode ser relacionado à imagem do professor Von X- personagem criado por Virginia Woolf em Um teto todo seu (1985) -, e sua tese atestando a inferioridade mental, moral e física do sexo feminino. A imagem do professor nos remete a um pensamento androcêntrico produzido e reproduzido ao longo da nossa história sociocultural por meio de teses religiosas, médicas, filosóficas e científicas que provocaram marcas que cicatrizaram o corpo feminino e, por conseguinte, permanecem em nosso imaginário cultural.
A respeito da história do corpo feminino, Witzel (2014, p.530), alicerçada aos estudos de Michelle Perrot sobre mulheres e os silêncios históricos, enfatiza que o 'poder-saber-normatizador' fundado em verdades que ainda hoje pesam sobre o ser mulher provocou dois efeitos: a passividade, a fragilidade e a inferiorização decorrentes dos estudos filosóficos da Grécia Antiga; e a aproximação entre corpo e pecado resultante dos discursos das grandes religiões monoteístas ocidentais.
Os discursos religiosos disseminaram também a associação do corpo da mulher a impurezas - "só a procriação justifica a cópula, sendo a castidade superior ao matrimônio, mesmo o cristão: velando-as" (Witzel, 2014, p.531). O corpo impuro silencia e restringe ao espaço doméstico e íntimo assuntos relacionados a sua especificidade, a exemplo da menstruação. É interessante salientar o quanto o discurso religioso fortalece a ideia de sujeira ao corpo feminino. Em levítico 15; 19-20, por exemplo, é afirmado que a menstruação deixa a mulher impura por sete dias e quem "tocar nela durante esse tempo será igualmente considerado impuro até o pôr do sol. Toda cama sobre a qual se deitar com seu fluxo ficará impura; todo móvel sobre o qual se assentar ficará também impuro". Embora o texto possua uma distância temporal e cultural da vida contemporânea no Brasil, não é difícil perceber o quanto sua reprodução é determinante para a construção do pensamento de que a menstruação está relacionada à sujeira.
Em decorrência do símbolo de impureza a qual a menstruação foi submetida, falar desse assunto tornou-se algo vergonhoso e constrangedor; levando as mulheres contemporâneas, por exemplo, a se referirem ao próprio corpo por metáforas - “o chico”, “o boi”, “tá com a boiada”, “ficou mocinha”, “assistida”, “está assistindo”, e tantas outras -, como observa Fáveri e Venson (2007, p.59) ao analisar narrativas de mulheres sobre a menstruação de diferentes gerações, no sul do Estado de Santa Catarina. O estudo dessas duas pesquisadoras fortalece o pensamento de que falar de menstruação no espaço público geralmente é um ato que implica constrangimento. Muitas preferem usar eufemismos e tentam aliviar a dificuldade que sentem ao falar sobre menstruação.
De forma complementar, Geórgia Maria Ferro Benetti (2010, p.10), ao estudar os discursos sobre a menstruação elaborados por mulheres no Orkut, relata que falar sobre esse tema desafia o controle social, institucional e disciplinador. Valendo-se das discussões foucaultianas, ela levanta a hipótese de que a produção do discurso em toda sociedade "é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade".
Sobre os silenciamentos e controle do corpo, ressalta-se ainda os avanços médicos no século XIX em decorrência do racionalismo provindo do Iluminismo. Ao estudar os corpos femininos descobriu-se a função dos ovários e o fato de que a menstruação ocorre de forma cíclica assim como a natureza; reforçando mais uma vez a ideia de passividade. Além disso, com essas descobertas chega-se a conclusão de que a menstruação e a lactação são particularidades femininas – eis o papel da mulher: reprodução e amamentação dos filhos.
O homem, provedor e intelectualmente capaz de construir história/cultura, é colocado mais uma vez em oposição a mulher passiva. Conforme Manica (2003, p. 135/136), o uso dos conceitos de natureza e cultura em "oposições dicotômicas e hierárquicas estaria relacionado a necessidade de atribuir valores ideologicamente determinados e reproduzir (...) relações sociais hierarquizadas". Ao vincular o corpo feminino a aspectos anatômicos e biológicos, os discursos médicos reafirmaram as práticas discursivas que sustentam a fragilidade e a limitação do corpo da mulher.
A representação da menstruação em Insubmissas lágrimas de mulheres
Ao considerar que, segundo Ricoeur, é na mimese II, configuração, que ocorre a intriga no campo textual, ou seja, o ponto de encontro entre a prefiguração da compreensão prática e a refiguração. Constata-se que são atribuídos aos eventos desintegrados narrados, relações que vão além da mera sucessão e enumeração de acontecimentos. O elemento unificador dos eventos que costura as intrigas dos contos em análise é a relação entre corpo/história.
Em Insubmissas lágrimas de mulheres temos um tipo de narradora-ouvinte que ao retomar a tradição dos contos orais, faz uso de uma terceira pessoa para apresentar e ouvir as histórias de treze mulheres negras, suas iguais. Cada conto tem por título o nome dessas mulheres. Esses nomes, em sua maioria, representam aspectos de personalidade das protagonistas. Em Mary Benedita, sétimo conto do livro, o primeiro nome em inglês simboliza o desejo dessa mulher de conhecer o mundo, de falar outras línguas, de ir além das fronteiras. Como estratégia de escrita em determinado momento da narrativa, é dada a palavra a cada uma dessas personagens para que elas possam narrar suas próprias histórias. Em primeira pessoa, passam a expor os seus corpos/histórias: as suas dores, as violências domésticas sofridas, a maternidade, os seus desejos, as suas identidades sexuais e de gênero.
Nota-se então que a representação das mulheres negras é feita de dentro – termo usado por Dalcastagnè (2012) para se referir aos textos produzidos por grupos marginalizados, entendidos por Melissa S. Williams (Dalcastagnè, 2012, p.17) em sentido amplo, como "todos aqueles que vivenciam uma identidade coletiva, que recebe valoração negativa da cultura dominante -, que sejam definidos por sexo, etnia, cor, orientação sexual, posição nas relações de produção, condição física ou outro critério". Decorre daí a verificação de que a definição canônica de Literatura Universal exclui desse espaço inúmeras outras formas de expressão.
Na obra em análise, a escritora transpõe essas barreiras e busca legitimar o seu direito de falar em nome de outras mulheres negras pela marcação de que são suas iguais. Acrescenta-se o fato de que a narrativa é construída no limiar entre ficção e realidade: a proposta de que os contos são baseados em histórias reais de diferentes mulheres é problematizada no prólogo da obra, quando questiona "então, as histórias não são inventadas?".
(...) estas histórias não são totalmente minhas, mas quase que me pertencem, na medida em que, às vezes, se (con)fundem com as minhas. Invento? Sim, invento sem o menor pudor. Então, as histórias não são inventadas? Mesmo as reais, quando são contadas. Desafio alguém a relatar fielmente algo que aconteceu. Entre o acontecimento e a narração do fato, alguma coisa se perde e por isso se acrescenta. O real vivido fica comprometido (Evaristo, 2011, p.9).
Ciente do problema da representatividade, é possível observar nesse prólogo a relação entre personagens, escritores/as e quem conta (narradora). Todos estão imbricados nesse ato de criar. Quem fala em nome do outro faz isso de um lugar que lhe dar esse direito. A protagonista de Insubmissas lágrimas de mulheres assegura essa legitimidade por escrever sobre mulheres, histórias, corpos, que se (con)fundem com os dela. Em suma, uma mulher negra abre caminho para outras iguais adentrarem no espaço literário. Ao fazer isso, aciona um eu que é elas e que somos todas nós: mulheres brasileiras negras.
Durante a construção da História sobre as mulheres negras, muita coisa se perdeu, porém a literatura e a escrita oferecem a possibilidade de, por meio da "escrevivência", acrescentar o que faltou: "quando se escreve, o comprometimento (ou o não comprometimento) entre o vivido e o escrito aprofunda mais o fosso. Entretanto, afirmo que, ao registrar estas histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma escrevivência" (Evaristo, 2011, p.9).
Ao trazer para a literatura um tema segregado em nossa vida cotidiana, Conceição Evaristo, em Insubmissas lágrimas de mulheres, apresenta perspectivas femininas que desmistificam as histórias que foram inventadas sobre nós e sobre os nossos corpos. Não somos impuras, não precisamos ter nojo ou segregar o nosso corpo. Enfim, as mulheres negras que protagonizam os contos da obra em análise desarmam a dominação corporal e os discursos materializados a respeito da menstruação.
São quatro os contos em que a temática da menstruação se faz presente em Insubmissas lágrimas de mulheres, a saber: Natalina Soledad, Maria do Rosário Imaculado dos Santos, Isaltina Campo Belo, Mary Benedita. Para cada uma dessas personagens singulares, as experiências em relação à menstruação são configuradas subjetiva e objetivamente. Submergidas a práticas discursivas normatizadas culturalmente, cada uma oferece um outro olhar em relação à primeira menstruação. Um olhar que constrói as suas individualidades e evidenciam a flexibilidade das identidades sexuais e de gênero.
A ideia da menarca, primeira menstruação, como um rito de passagem que deve ser confidenciado pela figura materna e segredado apenas entre mulheres, se faz presente em todos os contos. Em Natalina Soledad, protagonista que foi renegada por um pai misógino ao nascer, essa representação é alicerçada a força e a autonomia com a qual lidou com as exclusões diárias: "a menina Silveira crescia a contragosto dos pais. Solitária, aprendera quase tudo por si mesma, desde o pentear dos cabelos até os mais difíceis exercícios de matemática, assim como se cuidar nos períodos dos íntimos sangramentos" (Evaristo, 2011, p.21). Ao trocar o nome de batismo, Troçoleia Malvina Silveira, por Natalina Soledad, ela oferece um novo olhar sobre seu corpo.
Diferente de Natalina Soledad, Maria Imaculado do Rosário dos Santos, protagonista do quinto conto da obra, nasceu em uma família acolhedora. No entanto, ainda criança foi roubada dos pais por um casal que a levou para um lugar bem distante de onde vivia. Cresceu em uma solidão física. O corpo dessa personagem vivencia a primeira menstruação impregnado a ausência materna. A explicação é dada por uma outra mulher: "das coisas de mulheres, o sangue que perdemos, quando me aconteceu pela primeira vez, da moça que me ensinou a leitura também tive a explicação – Você agora é uma mulher!" (Evaristo, 2011, p. 42).
O "tornar-se mulher" é representado como um momento que gostaria de ter dividido com a mãe: "eu achava que eu já era mulher desde sempre. Tudo se confundiu naquela época, junto ao sangue que me escorria. Pensei em minha mãe. Eu ainda sabia, na memória, o jeito do rosto dela" (Evaristo, 2011, p. 43). Ser mulher, ter "coisas de mulher", não inferiorizam o seu corpo. Por isso a visibilidade dada ao sangue que escorria.
Torna-se interessante pontuar que os estudos das pesquisadoras Fáveri e Venson (2007, p. 65) sobre a experiência da menstruação, concluíram que os sentimentos de medo e vergonha são construídos culturalmente por relações de poder "circunscritos na prescrição de papéis ditos do feminino, mostrando um corpo produzido por expectativas de gênero". Os discursos que inferiorizaram a menstruação segredaram o corpo feminino entre vergonhas e silêncios.
Essa imagem de liberdade em meio a heranças discursivas, reproduzidas pelas práticas sociais, é acentuada em Isaltina Campo Belo, sexto conto do livro. Mulher que cresceu afirmando a si mesma ser um menino e não entendia o porquê da sua família, dos médicos, e da "mãe-enfermeira" não perceber isso. Sobre Isaltina Campo Belo, Virginia Vasconcellos Leal (2015, p. 125) relata que "toda sua infância e sua adolescência são marcadas pela sensação de uma identidade de gênero". Citando Guacira Lopes Louro, acrescenta: "como os sujeitos se identificam social e historicamente, como masculinos e femininos trocada (...), uma estranha no ninho, em que os pares são formados por um homem e uma mulher".
Ao sermos colocados diante de uma personagem que "parece ter nascido no corpo errado", preconceito naturalizado nas relações cotidianas, reproduzimos as práticas discursivas de inferiorização das sexualidades que fogem à norma, e, inferimos de imediato as desconstruções de si que a menina Isaltina Campo Belo faria ao perceber, pela experiência da menstruação, que na verdade sempre esteve "errada" sobre a sua sexualidade. Contudo, a maneira como a menstruação é representada por essa personagem mais descortina os costumes culturais em relação à menarca do que anula a identidade escolhida.
A mãe só se sentiu à vontade para instruir as filhas sobre a menstruação após dispensar o filho "(...) meu irmão foi dispensado e avisado de que não ficasse por ali, tentando escutar conversas de mulheres. Sem muitos rodeios e grandes explicações, ela nos falou do sangue que as mulheres vertem todos os meses". Reproduzindo o discurso cultural a mãe explica que a "irmã havia ficado 'mocinha'". A menstruação é um segredo que deve ser confidenciado somente às mulheres. Nota-se ainda a recuperação da ideia cultural de que a menarca simboliza "o tornar-se mulher" - "mocinha". O tom de segredo é reforçado quando a mãe, "com a entonação mais baixa e carinhosa de voz", afirma que brevemente teria duas "mocinhas" dentro de casa (Evaristo, 2011, p. 21).
O termo "mocinha" remete tanto ao fato de que as filhas haviam deixado de ser crianças quanto rotula os seus corpos. É possível a leitura de que a rotulação não condiz com a identidade sexual escolhida devido ao conhecimento prévio dos pensamentos e construções que Isaltina Campo Belo faz de si. Enfim, o tom amável da mãe retoma o estereótipo da mulher matriarcal, dócil, comprometida com o cuidado dos filhos e filhas. Já a experiência da personagem com a menstruação não é colocada como uma prova incontestável de que sua sexualidade difere da escolhida.
Outro fato a destacar dessa sequência de eventos em que a intriga foi estrategicamente elaborada, é que a menstruação abre espaço para essas "mocinhas" introduzirem novas conversas nas ruas, em busca de informações e ampliação daquelas oferecidas pela mãe "em pouco tempo, sem que a mamãe-enfermeira soubesse, descobrimos, na rua e nos livros, tudo sobre o corpo da mulher e do homem" (Evaristo, 2011, p. 21). Louro (2000, p. 18), ao falar sobre a sua experiência com a menstruação, ressalta que a menarca servia "para fazer uma separação entre quem ainda era menina e aquelas que já eram moças", pois a menarca simbolizava o adentrar em conversas sobre as particularidades desse período com mulheres mais velhas. Por conseguinte, "essas conversas representavam, quase sempre, a porta de entrada para muitas outras confidências e discussões sobre a sexualidade e se constituíam como espaço privilegiado para a construção de saberes sobre os nossos corpos e desejos".
Ao falar sobre os beijos e afagos dos homens para com as mulheres, Isaltina Campo Belo relata uma "sensação de estar fora do lugar" e não no "corpo errado", expressão frequente nas práticas discursivas. Ela via e sentia o corpo parecido com o da irmã, diferente do corpo do irmão, sabia que a menstruação é coisa "nossa, isto é, de mulheres" e que esse acontecimento significa que o corpo feminino pode "guardar dentro dele um bebê"; contudo seus desejos eram outros: "toda a minha adolescência, vivi um processo de fuga. Recusava namorados, inventava explicações sobre o meu desinteresse sobre os meninos e imaginava doces meninas sempre ao meu lado" (Evaristo, 2011, p. p.53/54). Assim, é fantasiosa a ideia de que os corpos são evidentes e trazem em si o que somos ou o que podemos nos tornar. Nem mesmo as identidades são uma decorrência direta das evidências dos corpos. Em Isaltina Campo Belo essa ideia fantasiosa sobre o corpo é desconstruída.
Contudo, o poder normatizador é reproduzido pela justificativa machista de ensinar seu corpo negro a ser mulher, ao se tornar vítima de um estupro coletivo. Em decorrência dessa situação traumatizante, engravida. Adiante, o contato com Miríades, a professora de sua filha e mulher por quem se apaixonou, trazem a imagem da menarca e dos demais acontecimentos sob uma nova perspectiva – "nesse emaranhado de lembranças, lá estavam o meu corpo-mulher, a cena do estupro, minha filha nascendo. E, de repente, uma constatação que me apaziguou. Não havia um menino em mim, não havia nenhum homem dentro de mim" (Evaristo, 2011, p.57).
Até esse momento, Isaltina Campo Belo via o estupro como um castigo por suas escolhas. Tratada como aberração, algo anormal, é comum a ideia de que aqueles que fogem à norma ficam sob o signo do pecado e, por isso, devem ser punidos. Entretanto, a certeza de que ocupava um corpo de mulher e que desejava sexualmente corpos semelhantes, faz da lembrança da menarca a confirmação de que a sua identidade é plural: "e foi então que eu me entendi mulher, igual a todas e diferente de todas que ali estavam" (Evaristo, 2011, p.57). É em um corpo de mulher que Isaltina Campo Belo se sente livre para escolher sua identidade sexual.
Da força de superação e da representação do corpo como espaço de liberdade, partimos para a representação da menstruação em Mary Benedita, sétimo conto do livro, enquanto obra de arte. Mary Benedita é uma mulher que sempre está apressada. Certa de suas escolhas, ela faz o que é preciso para realizá-las. Caracteriza-se por ser poliglota e gostar de viajar pelo mundo. Nesse conto, a experiência da menstruação se torna obra de arte. A narradora avisa que Mary Benedita "viera para (...) oferecer o seu corpo/história" (Evaristo, 2011, p.59).
A maneira como a representação da menstruação vai gradativamente atingindo tons maiores dentro da narrativa, permite a leitura de que a visibilidade desse acontecimento quer celebrar a liberdade com que a mulher contemporânea irrompe as fronteiras do mundo, rejeitando a restrição ao espaço privado. A personagem afirma o gênero feminino e engrandece o corpo mulher. É como se dissesse: o que nos afirma também merece espaço na arte. A menarca é reproduzida em pinturas artísticas. Afinal, foi a sensação provocada por esse acontecimento que a fez descobrir seu talento para as artes plásticas: "quando meu sangue, primeiro, em gotas, depois em intensos borbulhos, jorrou de mim, fui tomada pelo prazer intenso de ser mulher e queria fazer algo que traduzisse aquele momento. Resolvi pintar, fiz algo na tela que me deixou plena de mim" (Evaristo, 2011, p. 67).
A revelação de que a tinta usada para pintar os quadros que traz consigo, desde o início da conversa, é o sangue que colhe de si – tanto o menstrual quanto o que consegue por meio de cortes em seu próprio corpo – insere no espaço literário um corpo/mulher marcado pela violência, mas livre. A menstruação historicamente condicionada ao silêncio e segregada pela Literatura Universal irrompe as barreiras da arte contemporânea.
Entretanto, há uma pintura que nasce de mim inteira, a tintura também. Pinto e tinjo com o meu próprio corpo. Um prazer táctil imenso. Uso os dedos e o corpo, abdico do pincel. Tinjo em sangue. Navalho-me. Valho-me como matéria-prima. Tinta do meu rosto, das minhas mãos e do meu íntimo sangue. Do mais íntimo sangue, o menstrual. Colho de mim. Bordo como o meu sangue-útero a tela (...) São os meus melhores (Evaristo, 2011, p. 67/68).
Os períodos curtos e a sequência em que a intriga se dá ligam os acontecimentos de forma violenta. Propiciam um ritmo forte e gradativo que vai desvelando Mary Benedita como se compusesse um poema, uma ode de louvor à arte "sangrante" cuja matéria prima é seu próprio corpo. É interessante observar que a visão dessas quatro mulheres sobre a menstruação recupera o imaginário considerado universal (construído a partir do olhar masculino) ao mesmo tempo em que propõe repensar as amarras imbricadas nesse discurso. O leitor é convidado a desconstruir conceitos preestabelecidos sobre o corpo. Assim, "o mundo do texto e o mundo do leitor" (Ricoeur, 1994, p.110) podem reconfigurar e refletir sobre as verdades incontestáveis de um tempo humano que foi prefigurado na intriga: o sentido nasce da temporalidade humana e é para lá que ele volta refigurado e, caso o leitor aceite o convite, problematizado.
Considerações finais
Dos contos analisados, buscamos a possibilidade de estudo da recepção em uma dimensão social, na medida em que a reconfiguração do tempo narrativo é capaz de propiciar a reflexão sobre o tempo passado, o nosso tempo e o que há por vir em relação à história/corpo e a escrita feminina. A leitura pode ser sintetizada na imagem metafórica da "voz sangrante" de Mary Benedita contestando o espaço da arte ao mostrar as marcas do nosso corpo, as violências sofridas, as dores e a pele negra esculpida. Uma escrita feminina que se propõe a repensar e reconstruir a nossa história a partir do nosso corpo pode contribuir para a desconstrução dos preconceitos interiorizados e reafirmados pelo discurso patriarcal. As nossas especificidades e diferenças não nos faz menores, nos faz plurais.
O diálogo oferecido entre a prefiguração do mundo e a refiguração intermediada pela configuração literária pode propiciar uma leitura de mundo estética e social: uma (re)leitura de nossa própria história. Afinal, é na experiência humana que o tempo é narrado e é para lá que volta refigurado. Assim, no entrelugar da escrita feminina (entre o discurso do dominador e do silenciado culturalmente) novos horizontes de perspectivas podem nascer por meio dessas leituras.
Por fim, ao trazer para o território da literatura (um espaço político) a temática da menstruação de forma narrada, Conceição Evaristo e seu texto literário, produzido à margem, contribuem não apenas para a construção de uma tradição literária feminina, mas também para a representação de mulheres negras que fogem à submissão e à imagem subalterna. Mulheres que apesar de todas as violências domésticas e das tensas relações de poder que objetivam silenciá-las, encontram na valorização de seus corpos, de suas histórias a resposta para a pergunta que antecede qualquer leitura de Insubmissas lágrimas de mulheres: Por que essas lágrimas são tão insubmissas?
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