uma mulher era paulatinamente deposta da presidência do país e enquanto isso abríamos a nossa primeira chamada de texto direcionada a mulheres. nunca havíamos feito chamadas direcionadas. em uma das nossas reuniões de final de semana [sim, trabalhamos aos finais de semana, nossa única folga semanal], os meninos que integram o coletivo, por algum motivo, não apareceram. juliana, amanda e xu tinham a função de começar o esboço desta edição que vocês lêem agora e decidiram abrir, além da nossa chamada de textos tradicional [que não menciona gênero], esta outra chamada para mulheres. nós queríamos publicar mais mulheres. nós reconhecemos a desigualdade no mercado editorial. nós sabemos que mais homens são publicados. a pergunta que nos fizemos foi: "será que mais homens escrevem? será que o machismo estruturado em nossa realidade silencia as vozes femininas e por isso mais homens escrevem? e por isso mais homens são publicados?". recebemos mais de 450 e-mails com materiais diversos. muitos feitos por mulheres. não, as mulheres não se calam apesar de tudo. apesar de tudo, elas resistem. escrever é resistir.
esta edição, vocês verão, não traz apenas mulheres. isso porque o nosso processo de construção da edição se manteve o mesmo. além daquela chamada [simples e única], nada mudou: lemos todo o material dos 450 e-mails, selecionamos o que mais gostamos, ensaiamos uma coerência entre estes que mais gostamos, ensaiamos mapas possíveis, diversos caminhos. entre cerca de 80 materiais pré-aprovados, chegamos a isto que lêem: 25 poetas. entre eles, 17 mulheres. 3 textos críticos escritos por mulheres. 2 contos: mulheres. 2 vídeoartes: mulheres. 4 ensaios fotográficos: mulheres. mais de 3/4 da edição feita por mulheres. não porque são mulheres, mas porque são potentes. porque são textos necessários. vitais.
é óbvio que a experiência respondeu à pergunta que juliana, amanda e xu fizeram com uma negativa radical: "não, os homens não são mais publicados porque escevem mais, eles são mais publicados só porque são mais publicados. por quê?".
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a quinta edição da revista garupa vai ao ar em um momento crítico do nosso país, sabemos. desde o início - já faz dois anos e meio, nos impressiona - nosso coletivo assume uma linha editorial baseada na resistência. resistimos às forças de um mercado de trabalho que nos consome. resistimos a um mercado editorial e artísitico que cedeu ao capital. resistimos à má destribuição da cidade, ao transporte de péssima qualidade, à falta de tempo que nos é imposta. escrever é resistir. para nos manter vivos exercemos constante esforço. resistimos. e hoje, dias após um golpe ter se consolidado no brasil, preciso dizer: resistir é ainda mais urgente, mais necessário. resistiremos.
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um futuro vil nos foi anunciado.
enquanto restar um dos nossos de pé, resistiremos.
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ainda resta uma espera // ainda resta um pouco de crença // nas artes no mundo no movimento // ainda resta um gesto // ainda resta nossa força // uma poesia // uma humanidade ainda // ainda resta uma vontade de produzir ao contrário // do sistema // das cobranças // das exigências // ainda resta uma luta diária // ainda resta uma cidade por desvendar // ainda resta um trabalho qualquer // ainda resta uma leitura do mundo feita por olhos atentos // ainda resta uma palavra // sagrada // maldita // ainda resta um fôlego // ainda resta algo pelo que viver // ainda resta um sentimento // ainda resta um texto por ser escrito // ainda resta um amor // mais um amor // ainda resta um pouco de empatia // ainda resta um silêncio cheio de vozes // ainda resta uma travessia // desconhecida // um caminho // ainda resta um saber nas coisas implícitas // ainda resta uma nuance // em tudo // ainda resta um assunto // nunca falado // ainda resta um ritmo // ainda resta uma música jamais composta // ainda resta um país // ainda resta um espetáculo // ainda resta uma via expressa // ainda resta um jogo // uma partida // ainda resta uma despedida // ainda resta uma emergência // uma urgência // também a fome ainda resta // uma dor // ainda resta uma luta de classes // ainda resta uma fómula // hiper-quântica // ainda resta um motivo // resta um livro ainda para ser lido // ainda resta um mundo inteiro // ainda resta uma ajuda // ainda resta os dados lançados em tempos tão perigosos // ainda resta uma saída // ainda resta uma outra forma // ainda resta um corpo // uma voz // ainda resta um sexo // um número ímpar // um espelho // resta ainda uma mão em forma de concha // uma última delicadeza // ainda resta um esconderijo // um país sem nome // ainda resta // um //
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enquanto restar, resistiremos.